Músico foi um dos primeiros a falar sobre guerra, violência policial e consciência social num disco que influencia artistas e movimentos sociais até os dias de hoje
A Guerra do Vietnã deixou marcas profundas na cultura dos Estados Unidos. Foi um dos momentos mais quentes da Guerra Fria que se arrastava desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As imagens chegavam às televisões quase em tempo real e chocavam os estadunidenses que não viam muita razão para seu governo interferir no conflito. Isso fez com que obras produzidas durante o período refletissem esse sentimento. Uma delas é o disco What ‘s Going On (1971) de Marvin Gaye, que completa 50 anos agora em maio de 2021. O cantor, um dos grandes astros da soul music, conhecido por ser alegre e sexy, se viu afetado pelo conflito principalmente por ter um irmão no campo de batalha e criou uma obra única e digna de ser lembrada.
Observando a situação da sua vizinhança no final da década de 1960 e principalmente pelas cartas que seu irmão mandava do Vietnã, Gaye queria que sua música fosse diferente. Gostaria que suas canções “tocassem a alma das pessoas”, que elas fossem capazes de ver o que estava acontecendo. Além da situação social, Gaye ainda sofria pela morte da cantora Tammi Terrell, que havia morrido devido a um tumor no cérebro aos 24 anos em 1970. Foi com ela que o cantor gravou o dueto de Ain’t No Mountain High Enough, entre outros sucessos. Os problemas com drogas também começavam a interferir na vida do cantor.
Para conseguir ampliar seus limites musicais e passar a mensagem que queria com seu novo trabalho, Marvin Gaye teve que enfrentar como grande desafio convencer a própria gravadora, Motown Records, famosa no mercado de música negra, de que seu disco era bom. O fundador, Berry Gordy chegou a dizer coisas como que a faixa What ‘s Going On era a pior música que já tinha ouvido até então.
Entretanto, Gaye estava disposto a quebrar a fórmula pop da gravadora e ameaçou não gravar mais nada para ela, caso o trabalho não fosse lançado. A música e o disco não só foram um sucesso como, depois disso, diversos outros trabalhos de outros artistas sobre consciência social foram lançados pelo selo.
“Fui muito afetado pelas cartas que meu irmão enviava do Vietnã, e também pela situação da vizinhança. Percebi que tinha de deixar as fantasias para trás se quisesse compor músicas que tocariam a alma das pessoas. Queria que elas olhassem para o que estava acontecendo no mundo.” Trecho da fala de Marvin Gaye em Os 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos.
Enquanto trabalhava no estúdio e estava sob efeito de maconha, Gaye tomou algumas decisões meio intuitivas como deixar a fita rodando enquanto o saxofonista Eli Fontaine ensaiava ou quando seus amigos se reuniam no estúdio. Elementos esses que entraram, por exemplo, na canção título do disco. Essas e outras experimentações do músico, fizeram com que ele revolucionasse a música negra e que o disco ficasse conhecido como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), da soul music. What ‘s Going On foi o primeiro disco de Gaye a alcançar o top 10 da Billboard e o disco mais vendido da história da Motown.
What ‘s Going On: Um disco rápido, sucinto e apaixonado
Discos longos como Clube da Esquina (1972), de Lô Borges e Milton Nascimento, Exile on Main Street (1972) dos Rolling Stones ou Physical Graffiti (1975) do Led Zeppelin são maravilhosos, mas uma das qualidades de What’s Going on é a de ser sucinto. Ao longo de 9 canções ele consegue ser o suficiente e impressiona a ponto de querermos ouvi-lo de novo desde o início. Inclusive, esse é um comentário feito por Elton John a respeito de grandes discos na introdução da edição da Rolling Stones dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos. Ele diz: “Grandes álbuns deveriam ser curtos – quanto mais curtos, melhor. Se eu vejo um CD com dezessete faixas, resmungo”.
Mais a frente Elton comenta sobre ouvir o disco em formato de vinil “Mais tarde quando Bernie Taupin e eu dividíamos um apartamento, a maior alegria que tínhamos era comprar um LP novo e olhar o encarte enquanto escutávamos. What ‘s Going on (1971), de Marvin Gaye, por exemplo, mudou a cara da música negra para sempre. Com um disco assim, você tocava o lado A, levantava, dava uma pausa e trocava o lado. Havia algo mágico naquilo”.
As canções do disco têm uma estrutura interessante. Elas repetem basicamente os mesmos elementos sem parecer que é a mesma música se repetindo diversas vezes. Coisa que vem acontecendo recentemente num certo ritmo universitário que segue uma lógica mais industrial de produção de música. Outro disco clássico que faz algo parecido é A Tábua de Esmeralda (1974), de Jorge Ben. Os instrumentos e demais elementos se repetem ao longo das canções, mas sem que isso fique enfadonho e repetitivo. Pelo contrário, o disco se torna algo orgânico e merecedor do título de álbum.
As fotos do disco foram feitas por James Hendin que foi fotógrafo exclusivo da Motown Records. As fotografias tanto da capa quanto da contracapa mostram um Marvin Gaye perdido, no meio da neve, com uma expressão vazia, olhando para o nada. É como se as falas presentes nas letras das músicas perguntando “o que está acontecendo?”, “quem realmente se importa?” e coisas do tipo, estivessem passando pela cabeça do músico no momento do ensaio.
“Só quero fazer uma pergunta / Quem realmente se importa? / Para salvar um mundo em desespero? / Chegará um tempo, quando o mundo não estará cantando / As flores não vão crescer, os sinos não vão tocar / Quem realmente se importa? / Quem está disposto a tentar salvar um mundo / Que está destinado a morrer? / Quando eu olho para o mundo, isso me enche de tristeza” Trecho da faixa Save the Children, do álbum What ‘s Going On
What ‘s Going On anos depois na arte e nas ruas
A obra de Gaye, também serviu de influência para outros artistas criarem suas próprias pérolas. Como é o caso do disco Ok Computer (1997), da banda britânica Radiohead. Os membros contam que What ‘s Going on foi uma grande inspiração ao lado de outras obras clássicas como Pet Sounds (1966), dos Beach Boys e Bitches Brew (1969), de Miles Davis. Smokey Robinson, cantor e compositor que já foi vice-presidente da Motown, considerou o disco como o melhor de todos os tempos.
“Como se pode ser sexy e sorrir quando se tem o peso do mundo sobre os ombros? Como transformar a tragédia em triunfo? E como, ainda por cima, revolucionar a música soul? A resposta é simples: sendo Marvin Gaye” Bruno MacDonald, em 1001 Discos para Ouvir Antes de Morrer.
Em 2001 foi lançado um álbum também intitulado What ‘s Going On? com o intuito de arrecadar fundos para programas de AIDS na África e outras regiões necessitadas no planeta. Denominado “Artists Against AIDS Worldwide” (Artistas Contra AIDS no Mundo), reunia cantores e grupos como Bono (U2), Christina Aguilera, N’ Sync, Britney Spears, Ja Rule e outros. Com os atentados às Torre Gêmeas em 11 de setembro do mesmo ano, os valores também foram destinados à instituições como a Cruz Vermelha. Foi lançado também um clipe com os artistas que participavam do projeto.
A governadora do Michigan, onde é a casa da gravadora Motown, Gretchen Whitmer, anunciou que dia 20 de janeiro passa a ser considerado o What ‘s Going On Day. A data marca o dia do lançamento do single que dá nome ao disco e foi escolhida pelo legado da canção e seu questionamento a respeito de guerras e violência policial.
“Acho que o disco todo tem belezas e texturas maravilhosas. Mas a faixa título me emociona toda vez que ouço por sentir que Marvin Gaye direciona sua canção e suas palavras para seu povo, numa intenção de dar um papo reto e, ao mesmo tempo, de acolhimento, ressaltando que não estamos sós. Uma canção de 1971 que faz sentido até hoje e continuará fazendo: o que está acontecendo?”, diz a cantora e compositora Liniker em entrevista para a Elle.
O diretor Spike Lee, conhecido por tratar questões raciais em seus filmes, também usou faixas do álbum na sua produção para a Netflix Destacamento Blood (2020). No filme um grupo de veteranos negros voltam ao Vietnã para tentar recuperar um ouro que eles deixaram escondido e honrar um companheiro que eles perderam no conflito.
Com sua relevância de cinquenta anos, What’s Going On não só reflete o seu próprio tempo, mas encontra ecos na forma de fazer música e nas questões que ele levanta. A canção título foi um dos hinos que foram cantados em protesto à morte de George Floyd e que fez o movimento Black Lives Matters tomar as ruas do mundo mesmo em meio à uma pandemia. Marvin Gaye, meio século depois, conseguiu dar voz à um homem que foi assassinado dizendo que não conseguia respirar. É portanto, um disco gigante, atemporal. E a pergunta “o que está acontecendo” ainda ecoa no nosso tempo, mas ainda sem resposta.
Ouça o álbum completo: