Gustavo Bertoni

Conversamos com o cantor sobre o seu novo álbum, os tempos de Scalene, esperança e autoconhecimento

Pensar sobre a cena brasileira de bandas dos anos 2010 é passar pela voz de Gustavo Bertoni. Por mais de dez anos, o cantor ocupou a posição de vocalista e principal compositor da banda brasiliense Scalene, enquanto fazia o seu projeto solo em paralelo. Após o hiatus da banda e a saída do baterista Makako anunciados no ano passado, essa relação mudou. “Era mais um projeto paralelo assim, e agora eu estou encarando como carreira”, Gustavo nos contou em conversa por vídeo. “E já é o quarto [álbum solo], né? Então eu vou fazer 30 anos esse ano e vai ser meu décimo disco”. 

Lançar dez discos em menos de quinze anos de carreira é para poucos. Mas a Scalene sempre foi uma banda de exceções. Cruzaram os limites pré-estabelecidos para novas bandas de rock para chegarem a programas na TV aberta, tocarem no palco principal do maior festival do país, estabelecerem boas relações comerciais, e tudo isso sem abdicar da sonoridade que queriam fazer. Uma carreira possibilitada pela soma de muito trabalho, talento, fãs engajados, conexões, sorte e privilégios – além de sobreviver a polêmicas envolvendo a vida pessoal de integrantes. Entre os erros e acertos, Gustavo não se arrepende dessa jornada. “Sou tão grato, cara, com tudo que a gente viveu… Não mudaria nada, sinceramente”, declarou.

Agora, se aventurando exclusivamente solo pela primeira vez, Gustavo está buscando encontrar sua própria perspectiva. Este é o tema que guia “I Got My Eyes Fixed”, álbum que gravou em Los Angeles no estúdio do lendário Mario Caldato Jr com o produtor Lucas Mayer. Lançado em 1 de junho, o disco é um estudo do equilíbrio entre a canção e a música ambiente. Em onze faixas, o cantor reflete sobre a constante busca por uma visão autêntica. 

“Isso às vezes pode soar meio autocentrado, egoísta, mas é curiosamente o contrário. É quando você se propõe a enxergar o mundo da sua forma que você consegue respeitar e entender melhor a visão do outro”

Capa do álbum "I Got My Eyes Fixed" de Gustavo Bertoni
Capa do álbum “I Got My Eyes Fixed” | Crédito: Divulgação

Apesar desse lançamento tão recente, o cantor já está pensando nos próximos passos. Um docudrama de “I Got My Eyes Fixed” será lançado em breve e já existem planos de um novo trabalho. “Eu já estou compondo mais um disco, porque eu sou completamente obsessivo com isso”, disse. O novo álbum, segundo Gustavo, será mais dançante e com composições em português – um terreno pouco explorado em sua carreira solo até então (apesar de ótimos acertos, como o feat com Giovanna Moraes).

Em uma conversa por vídeo, de sua casa em São Paulo, Gustavo compartilhou mais sobre o processo do novo disco, dividiu suas recentes aventuras em trilha sonora e produção para outros artistas, refletiu sobre privacidade, responsabilidade, pertencimento, contemplação e mais.

Se o silêncio ganhou espaço neste álbum do Gustavo, por aqui faremos o contrário. Ignorando algumas das supostas regras de formato, SEO e retenção, vamos compartilhar cinco mil palavras de conversa com o cantor. Vantagens de ser um site independente. Confira a transcrição desse papo a seguir. 

Minuto Indie: Prazer, Gustavo. Bom, primeiro, parabéns pelo lançamento de mais um disco. 

Gustavo Bertoni: Prazer, Maria. Obrigado, valeu demais! 

MI: Especialmente depois desse período aí que a gente passou, lançar disco é vitória. 

Gustavo: Ah, sim. Total. 

MI: E esse é o seu quarto disco, né? Mas o primeiro desde que vocês anunciaram a pausa com a Scalene. Como está sendo dar esses passos exclusivamente solo pela primeira vez?

Gustavo: É, tem uma lacuna de tempo que você abriu ali, né? E toda dedicação emocional de viagem, estar e ter uma banda. Eu brinquei, a gente voltou a querer almoçar juntos e falar sobre a vida, e não só sobre trabalho. Porque a gente é tudo amigo de infância, meu irmão tá na banda e tal. A gente sempre se deu muito bem, mas 12, 13 anos de banda, casamento, estrada e tal, dá um desgaste para a relação. É natural assim. Então, nunca houve briga nem nada, mas a gente viu que ia ser interessante dar uma respirada. E aí todo mundo meio que teve que remodificar a vida, e tem sido muito positivo, na verdade. Todo mundo explorando novos projetos, conhecendo novas pessoas, novas formas de pensar, outras empresas… A gente sempre foi os próprios chefes, digamos assim. Então é interessante ver que os moleques têm arranjado trampos onde eles têm chefes.

Eu, no final das contas, acabei mais na vida que eu já tinha, só comecei a produzir artistas novos também. Criando um portfólio, pegando essa experiência como produtor. Tem sido muito legal, muito gratificante. Muito maneiro não ser o protagonista sempre, ser só alguém que está servindo alguém ali, entendendo o potencial do artista, entendendo a identidade e tentando potencializar isso, direcionando, enriquecendo um pouco, mas trabalhando como produtor de canções que não são minhas. Então eu tenho tido esse aspecto. Tenho feito umas trilhas também para algumas coisas de cinema, que eu adoro fazer, e acabou que influenciou muito o meu trabalho autoral. 

E como você falou, eu já tinha lançado três discos, sempre de uma forma paralela à banda, e foi crescendo uma vontade de tornar uma carreira, era mais um projeto paralelo assim, e agora eu estou encarando como carreira. E já é o quarto, né? Então eu vou fazer 30 anos esse ano e vai ser meu décimo disco. Então é muito legal ver que nunca deixa de ser especial. Porque é sempre um processo transformativo, você coloca uma ideia na cabeça, tenta entender essas canções, qual é o elo entre elas, o que você está buscando como pessoa, em comunicar e entender de si mesmo durante esse processo de manufatura de um disco. Então, ter esse tempo da banda certamente me permitiu focar mais em outras coisas, mas não necessariamente estou compondo menos ou mais durante esse processo, eu continuo compondo muito para vários projetos. 

E foi gostoso, uma imersão no piano, outro som mais experimental. Também, por mais que a gente já tenha uma canseira de falar de pandemia, querendo ou não foi um tanto desenvolvido durante ela, pelo simples fato de eu, quando estava procurando apartamento, eu encontrei um piano abandonado num depósito e comprei ele por um preço simbólico – porque ele queria me dar de graça, falei que “eu não vou fazer isso com ele” – comprei por mil reais um piano japonês, Kawai 240. Aí foi na intimidade com esse instrumento que comecei a elaborar, assim, um disco. 

MI: Antes de entrar nesse disco, eu queria voltar um pouco nesse processo de transição. Você falou que estar na estrada é casamento e como tinha relação de amizade, de irmandade entre vocês. Eu estava no último show da Scalene no Rio…

Gustavo: Ah, que massa! Que daora! 

MI: E lembro de sentir várias coisas. Eu acompanhava os shows há muito anos e ali foi quase como mudança de capítulo, o fim de capítulo…

Gustavo: É doido como quem acompanha o trabalho sente as coisas juntas. A gente cai sempre naquela coisa que o Rick Rubin resume muito bem, que é fazer a música para si mesmo, é o melhor que você pode dar para o público. É uma coisa paradoxal, a gente tentar viver e compor sobre a vida da forma mais autêntica para nós mesmos, acho que é o melhor que a gente pode dar para os fãs. E nesse processo a gente está compartilhando uma coisa muito pessoal mesmo. E a gente vai amadurecendo junto. Quando o Scalene estourou, digamos, em 2015, eu tinha 21 anos. E a gente estourou com um álbum que eu fiz com 18 e 19, sabe? É bizarro pensar que algumas das nossas músicas mais escutadas até hoje eu compus com 18. Daquela voz ali, meio imatura ainda. Mas é lindo ver os fãs crescendo junto a gente.

Outro dia eu toquei no Rio num show solo e o Diogo estava lá. O Diogo já foi em, eu acho, em 23 ou 25 shows. E éramos dois moleques quando ele começou a ir no nosso show. E é muito bonito ver isso. Você ver aquele jovem que ainda tá se encontrando, ainda se veste meio esquisito, indo no show com 16, 17 anos, sei lá, passam-se 6, 8 anos e você vê um adulto ali. Todo tipo formado, menos tímido com você [risos]. Quantos encontros já não tive com fãs que no início são super tímidos e com o tempo passam a ficar mais à vontade. Então, foi muito legal ver que realmente, e legal escutar isso de você, que assim como foi o fim de um capítulo pra gente, foi pra muitos fãs também. 

E sabe-se lá do futuro, mas eu acho que o importante é que a gente está aprendendo a manter a amizade acima da correria. Porque eu acho que, com qualquer coisa que se torna automática, você está correndo o risco de passar por cima de nuances muito sutis das relações e das emoções, do tempo de cada um, a forma de cada um de viver a vida. E a gente está se realinhando assim, então tem sido muito legal. 

MI: Lembro de estar ainda no ensino médio, e depois de crescer e continuar indo, e de acompanhar as diferenças. Show vazio, show cheio, show longe, show perto…

Gustavo: Som bom, som ruim…

MI: Exatamente! [risos] Mas, vindo para a sua música, o último disco você gravou em Berlim e nesse você foi pra Los Angeles. Por que Los Angeles?

Gustavo: Ambas as oportunidades foram por conta do produtor, o Lucas Mayer. Ele tem uma empresa de publicidade, e por isso tem sócios no mundo todo. E esses sócios são muito generosos e deixam eu gravar de graça em seus estúdios. O dólar do jeito que está, nunca que eu poderia bancar seis ou oito dias do estúdio do Mario Caldato, que é um estúdio top de linha, só equipamento brutal, microfones raros, pianos maravilhosos. E foi um gás assim, porque não é meu instrumento principal, não é um instrumento que eu toco de olho fechado. Hoje em dia, eu estou ficando mais fluente nele, mas longe de ser um pianista. Nem me considero um pianista, acho que seria um pouco desrespeitoso com os pianistas falar isso. E aí treinei, peguei umas aulas de piano pra chegar lá, sentar no Steinway de 1950, num Yamaha de 1960 e conseguir respeitá-los. E rolou super com timbre maravilhoso de piano. 

E então foi uma escolha prática, uma escolha logística. E com essa escolha logística vem uma imersão. Tanto em Berlim quanto em LA. Foi uma experiência muito diferente, porque Berlim estava no inverno. Eu estava numa época meio que pós-término, mais melancólica, então foi absolutamente perfeito. E uma coisa que foi até interessante dessa viagem de Berlim, que me inspirou para a composição do Labirinto da Scalene, foi que curiosamente na cidade da música eletrônica e de compositores de música ambiente, que é o que eu mais tenho escutado, me deu muita vontade de escutar rock. Então andando sozinho pelas ruas de Berlim, gravando um disco folk, eu tinha vontade de colocar um rock, para aquecer a alma. Aí eu meio que criei uma relação diferente com o rock, o que inspirou o Labirinto.

Então, a gente mudar de lugar, estar num lugar onde as pessoas não me conhecem, por exemplo… Por mais que eu não seja super conhecido, mas sou conhecido. Então, andando na rua, você sai, você é reconhecido, você está na sociedade, você está com as pessoas que você convive, você tem uma certa persona social. Quando você viaja, você fica meio livre disso. Então você consegue se expressar de uma forma muito genuína, porque você consegue se enxergar como um canvas em branco. O que eu posso ser aqui?

Então acho que as duas viagens me possibilitaram uma imersão legal de viver realmente a gravação do álbum. Não é tipo, vou para o estúdio, gravo e volto para minha casa. Vou para o estúdio, gravo e vou para um Airbnb ou para um hotel, ou para a casa de alguém. Você se sente um pouco nômade. Eu acho que isso é inspirador. 

MI: Você falou dessa questão de estar lá e querer fazer, ouvir rock. Você sente agora um pouco disso fazendo seu trabalho solo, voltado para música ambiente, para o piano, sabendo que você não vai ter a Scalene no paralelo, de imediato, para gritar quando quiser, fazer sons mais barulhentos? Ou a qualquer momento no projeto solo, uma música barulhenta pode surgir? 

Gustavo: Pois é, muito curioso isso, sempre que eu estou gravando alguma coisa mais calma, eu tenho uma tendência a voltar a escutar coisas mais pesadas, ou mais animadas. Eu já estou compondo mais um disco, porque eu sou completamente obsessivo com isso, e agora eu estou compondo um disco um pouco mais animado solo, em português, é um projeto para o futuro. O “I Got My Eyes Fixed” até acaba com um momento meio pesadinho, assim, é um trip hop, um beat, um sintetizador mais agressivo. Então foi bom nesse álbum ter alguns momentos de uma certa grandiosidade, porque o meu último álbum foi muito intimista, muito melancólico. E esse eu acho um pouco mais esperançoso. Tem sua densidade, mas ele já tem uma leveza, um certo clarear da visão, que é literalmente o que aconteceu comigo e eu tentei explorar no conceito do álbum. 

No último álbum eu falei muito da linha turva, da falta de quinas, que é meio como eu e você enxergamos sem óculos. E nada é realmente como é, a gente tá quase que interpretando as coisas, quase como um quadro impressionista, de várias camadas um por cima da outra. Eu explorei essa confusão, digamos assim, emocional no último álbum. E nesse eu estava sentindo que as coisas estavam mais claras, estava tudo mais lugar, estava mais ciente de mim, menos confuso. Então acho que o álbum acabou tendo uma borda mais definida de arranjo e de letra. É isso. 

MI: Você menciona que esse é um disco mais esperançoso. Mas você compôs nesse período que a esperança estava um pouco difícil, em geral, de sentir. Como um disco esperançoso saiu desse contexto? 

Gustavo: Boa pergunta. Acho que as letras até vieram mais pós-pandemia. Nesse respiro. Então acho que a esperança vem daí também. Quando a gente se depara em situações mais desafiadoras, a gente tem que buscar em algum lugar, né? Então acho que vem um pouco dessa pulsa de querer ver beleza e luz nas coisas. Num país pós-Bolsonaro, naturalmente a gente vai conseguir sorrir um pouco mais. E eu sinto as pessoas um pouco mais solares, eu me sinto assim agora também. E é bonito de ver, acho que a gente tem que celebrar isso. 

Acho que, também pós Labirinto… o Labirinto é um disco muito dark, do Scalene, ele foi completamente composto na ideia de explorar o lado sombra, que é o processo de integrar esses nossos lados. Para realmente se tornar uma pessoa mais completa, não somente buscando luz e buscando coisas ideais, coisas que a gente acha bonita e nós mesmos, mas é aceitando e olhando para as coisas mais desafiadoras da nossa psique. Então também teve um contraste, de putz, já fiquei ali no vale, na sombra um tempo, porque está na hora de colocar a cabeça no sol. E aí eu estou nesse processo. 

MI: Falando da sonoridade, nesse álbum o silêncio aparece um pouco mais, como um vazio, um espaço. Mas nem sempre é um vazio tranquilo, né? Pode ser como um vazio tenso, ou às vezes até dançante, como você mencionou. Por que você acha que, enquanto parece que as coisas estão ficando mais barulhentas, seu som está ficando um pouco mais silencioso? 

Gustavo: Muito legal você falar isso. Realmente é uma decisão consciente de sustentar o vazio, sustentar o silêncio, não preencher ele. A gente tem que fazer isso em nossas vidas. São Paulo é uma cidade barulhenta, então talvez… Agora eu estou com uma janela antirruído, qualidade de vida, graças a Deus. [risos] Mas eu acho que o ruído apareceu no último álbum como textura, acho que para contextualizar o folk em um lugar menos bucólico, caricato do mato, até porque quando a gente vai para o mato a gente não escuta folk. Isso é uma herança estadunidense, irlandesa da nossa parte. E eu amo, não posso negar porque cresci escutando isso. Minha mãe é de 1962, então o folk dos anos 70 é uma coisa que escuto desde moleque. Então está no meu DNA como compositor é uma coisa que me traz calma, me traz para casa.  Então o movimento no último álbum foi trazer um pouco do ruído do sintetizador, das texturas, para esse folk, para contextualizar em um lugar mais cosmopolita, mais globalizado. 

E esse álbum acho que foi um pouco do contrário, é realmente sustentar o vazio e o silêncio, dar espaço. Acho que Scalene é um som que a gente preenche bastante os espaços, a gente quer que seja uma coisa meio entorpecente. Acho que queremos quase que alcançar o caos mental que vivemos para que a gente se reconheça no som, se reconheça no caos e para que, de alguma forma, isso se comunique com a gente. Então a catarse pode ser feita de duas formas, tanto pelo sync com o caos mental e tanto pela falta de. O vazio é fazer você permitir o caos que já está ali.

Acaba tendo um pouco de um puxa e empurra entre os projetos e entre os álbuns. Naturalmente os artistas, mesmo quando não tem mais de um projeto, acho que já fazem um pouco isso. O álbum é quase uma resposta ao próximo e depois você sente que você já deu uma dominada naquele som e você começa a querer explorar outras coisas. Aí depois responde a exploração, às vezes voltando a uma coisa mais concisa, mais familiar. E como eu tenho dois projetos, isso acontece nos dois projetos, né? Então vai e vem constante, que eu acho super intrigante, me dá bastante vigor.

“Eu quero fazer companhia para as pessoas nesse lugar também, porque eu sinto que muitos compositores fizeram essa companhia para mim nos últimos anos, esse lugar da música ambiente, que é uma música que não faz questão de ser protagonista.”

MI: Agora eu queria te ouvir sobre barulhos externos. A Scalene surgiu quando você era muito novo, no momento de formação e popularização de redes sociais por aqui e a mudança também um pouco dessa relação de fã com artista. De cobrança, de intimidade… Hoje, depois desses anos de carreira, como você enxerga essa posição de preservação da privacidade/cobrança e necessidade, se há necessidade, de justificativa para o público?

Gustavo: Perfeito. Eu acho que todo mundo vive isso em algum grau, em qualquer trabalho. Mas acho que quando você é uma pessoa pública, talvez seja um pouco intensificado. Mas [quando] a gente aconteceu, eu ainda era muito novo, eu tinha muito a provar para mim mesmo ainda e eu senti que tinha muito a provar para os outros. Com o tempo, você vai entendendo o que é realmente responsabilidade sua e o que não é. E você entende que, como artista, você quer se mostrar humano, você quer mostrar o belo e o não-belo. Eu acho que é mais sincero dessa forma. Então com o tempo você vai ficando cada vez mais à vontade de ser sempre mais sincero e compartilhar o que você tem de bom, o que você não tem de tão bom, o que você gosta de você, o que você não gosta tanto em você.

Eu acho que o fã que tem capacidade crítica pode se inspirar no artista por tudo que ele faz, não só no que ele acerta. No nosso caso a gente foi colocado como “a nova banda do rock”, tinha uma grande pressão, e óbvio que a sua ambição, o seu ego quer atender a essa expectativa. E eu tentei. De várias formas, acho que foi uma coisa desafiadora. Como é que eu me encaixo nisso que esperam de mim? Não vejo só como coisa negativa, acho que é bom a gente ter parâmetros e desafios para tentar alcançar. 

Mas como uma pessoa nova, eu acho que você dá passos maiores do que suas pernas. Um, porque eu acho que você só pode falar do que você viveu, né? E você só pode sentir o líder ou a voz de algo quando você sente que genuinamente você já pode fazer aquilo. E acho que existe uma pressão, às vezes, principalmente no rock, por ter uma veia política, de você falar para uma geração ou alguma coisa assim. Então, acho que o meu processo ali na minha, não vou nem falar em imaturidade, mas na minha tentativa de correr atrás do que estavam esperando de mim, foi entender que eu estava focando mais no trabalho externo – o que que eu vou apresentar para o mundo e como é que eu atendo essa expectativa – e menos no trabalho interno, que é tipo, o que que eu preciso ler, mudar em mim, amadurecer em mim, para que eu seja a melhor versão de mim, para que as pessoas tenham acesso a isso.

Tem até uma foto que eu postei um tempo atrás, que foi uma coisa espontânea, tinha um espelho, estava fazendo um photoshoot, peguei esse espelho para brincar com ele. E fiz uma foto dupla, um era eu olhando pro espelho, num processo mais de auto reflexão, quase narcísico, e depois que você joga pro mundo, você coloca o espelho na sua cara, e você vira uma projeção do que os outros querem extrair e interpretar de você. Então, com o tempo, você entende que não é sua responsabilidade atender ao que os outros interpretam de você, porque aquilo é uma projeção deles. Então essa responsabilidade vai ficando bem mais leve. Eu acho que você começa a focar mais na responsabilidade com si mesmo. Tipo, vou cuidar da minha saúde mental para que eu consiga cuidar de mim e estar bem pros outros.

Para você focar em si, foi uma coisa que demorei muito pra aprender e estou aprendendo agora só depois de uns 4 anos de terapia. Percebi que é focando em mim e na minha saúde mental que eu consigo passar uma mensagem, uma energia bacana para quem me escuta. E assim é muito mais gratificante, é mais leve e tal. Mas vem com o tempo. Imagino que quem estore mais tarde já esteja um pouco mais ciente de si e seja um pouco mais fácil. É super comum você ver pessoas que estouram muito cedo tendo uma espécie de crise de identidade e tal. Aos 16, 18 anos, imagina, né? Você olha para esses artistas pop que passam por isso e é muito complexo. 

Eu vivi relativamente cedo também. Dentro do possível, lidei bem, mas teve coisas que certamente poderia ter feito melhor. Mas não olho com arrependimento ou qualquer coisa assim, é mais uma sensação que foi uma jornada, um desafio gigantesco colocado em meus ombros e que aprendi tanto, sou tão grato assim, cara, com tudo que a gente viveu… Não mudaria nada, sinceramente. Hoje em dia eu me vejo muito realizado criativamente, vivendo o que eu amo. A jornada interna para todo mundo já é complexa. Quando você é uma pessoa pública, a jornada interna é compartilhada. Então você tem que se atentar, focar em si, estar bem consigo mesmo, para aí sim pensar em estar bem para os outros.

“E eu acho que também nessa época onde tudo está sendo muito comprimido, muito condensado, saturado mesmo, repetitivo, você tem que cada vez mais buscar formas de tornar o conciso e o condensado mais profundo. Eu acho que essa é a minha busca sempre. Como é que eu falo muito com pouco?”

MI: Você mencionou começar a ler mais por si, consumir coisas por si. Vejo que você nos últimos anos tem se aproximado um pouco mais de outras expressões artísticas, de acompanhar as artes visuais, de compartilhar mais o que você está lendo… Inclusive as partes do audiovisual estão sendo um pouco mais desenvolvidas agora no seu trabalho. Como é a sua relação com essas outras expressões artísticas, além da música?

Gustavo: Eu acho que é uma sede por outras formas de pensar e uma constante aprendizagem de abrir mão do controle criativo. Você desenvolver um conceito ou uma linguagem sólida para que, quando você compartilhe isso com outros artistas, eles possam interpretar aquilo da forma deles, executar arte deles em cima daquilo. Então acho que a meticulosidade entra na formação da essência do que aquele trabalho é e depois você abre mão do controle. 

Essa parada de querer controlar o audiovisual criativamente, do início ao fim, acho que é desnecessário. Eu acho que essa ilusão de controle ou tentativa de ter tem mais a ver com algum tipo de insegurança que você possa ter. E você tem que encontrar as pessoas que realmente gostam de trabalhar e as pessoas que você confia plenamente, esteticamente ou ideologicamente no que eles fazem. No fim das contas você faz um documento, né? [risos] Fazendo um belo do Google Drive para esses artistas, explicando os seus sentimentos, intenções, suas dúvidas, suas curiosidades. Aí, abre mão, deixa eles fazerem o que eles fazem. E você aprende muito com o tempo do outro artista e com a forma deles de interpretarem o que você faz. E é uma coisa muito rica.

Tenho tido privilégios de trabalhar com uns artistas muito legais ao audiovisual e me permitir também explorar mais o meu corpo, me colocar um pouco ali como acting, dançar um pouquinho ali e aqui. Fiz uma live de lançamento muito legal do último álbum. Esse álbum vai ter um docudrama que eu dou uma atuada também. É isso, acho que a gente tem que manter a chama da curiosidade sempre acesa. É legal você ir aprendendo com outros artistas.

E eu acho que também nessa época onde tudo está sendo muito comprimido, muito condensado, saturado mesmo, repetitivo, você tem que cada vez mais buscar formas de tornar o conciso e o condensado mais profundo. Eu acho que essa é a minha busca sempre. Como é que eu falo muito com pouco? Como é que ao lançar um visualizer que seja, como é que eu passo algum tipo de forma de ver as coisas dentro disso? É meio que o impalpável, o invisível na arte. Tem a ver com o que você falou do vazio e do silêncio. Não precisa necessariamente explicar tudo, não precisa exatamente guiar o fã para um entendimento de alguma coisa. Cada vez menos tenho vontade de convencer alguém de alguma coisa, quero é só provocar a pessoa. Você quer seduzir a pessoa, provocá-la, você não quer convencê-la de nada, quer que ela pense por si própria. Porque quando você começa a pensar por si próprio, você passa a respeitar muito mais o pensamento do outro e querer aprender com esse pensamento do outro. Você se sente mais livre. Então, você quer fazer uma arte que a pessoa possa absorver livremente. 

A questão do tempo acabou influenciando muito nesse disco também. Tem muitas coisas instrumentais ali. Tem um certo grau de contemplação que eu vejo como resistência para a TikTokização da sociedade. Tudo tem que ter muito estímulo, tem que captar muito rapidamente as pessoas. Eu acho que tem uma coisa interessante nisso também, mas… Mas, sei lá, cada vez mais a arte que tem um tempo próprio, ela me agrada. E é o tipo de arte que quando eu contemplo, eu me sinto meio grato depois, porque eu falo que, “puta, esse artista me tirou de mim”, sabe? A gente já está sempre cheio dos nossos próprios pensamentos, olhando pro nosso próprio Instagram e contemplando a si mesmo, constantemente. E contemplar o outro é contemplar a si, né? Mas pra isso você tem que sair um pouco dos seus desejos e da sua expectativa de realização das suas angústias, onde os estímulos estão sempre nos afagando de alguma forma. 

E as mídias sociais fazem isso de uma forma brutal. Então, se eu estou num dia muito corrido e eu sentar para assistir um filme e nos 15 e 20 primeiros minutos eu ficar impaciente, eu sei que tem algo acontecendo comigo que eu devo olhar e falar “se aguentar esses 20 minutos, 25 minutos de tédio ou ansiedade, eu sei que daqui a uma hora e meia eu vou estar grato por ter tido isso”. Então tentei representar um pouco nesse disco essa sensação de… Ah, entre uma música e outra, escuta esse um minuto e meio, esses dois minutos aqui de piano, só vibe. Tipo, esquece de mim. Você escutou esse single? Deixa essa outra música rolar. Provavelmente você vai viajar, você nem vai lembrar que está escutando essa música. Mas você vai responder seus e-mails, você vai responder seu WhatsApp, você vai checar a sua agenda enquanto essa música está lá atuando em você inconscientemente.

Então eu quero fazer companhia para as pessoas nesse lugar também, porque eu sinto que muitos compositores fizeram essa companhia para mim nos últimos anos, esse lugar da música ambiente, que é uma música que não faz questão de ser protagonista. Aí encontrar esse equilíbrio entre, quero fazer uma música que é auto-suficiente, se você fechar o olho e escutá-la, ela vai ter estímulo e informação o suficiente para você ficar satisfeito. Mas se você não estiver prestando atenção nela, ela vai estar ali de uma forma gostosa também. Buscar esse meio termo entre canção e música ambiente foi uma pesquisa legal.

MI: Você usa TikTok? 

Gustavo: Tô postando umas besteiras lá. Desapeguei, posto umas coisas lá. Quanto mais bem feito menos view tem, quanto mais zoada mais visualização tem. [risos] Então tô ali.. Acho que é uma plataforma que permite você se levar um pouco menos a sério. Eu sou uma pessoa que gosta do belo, gosta das coisas bem feitas e não é isso que as pessoas querem no TikTok, né, elas querem uma coisa mais visceral mesmo, então assim, as poucas coisas que eu fiz lá, mais bobas ou pessoais, a galera gostou. É a possibilidade de mostrar um lado, e também de exercitar sua forma de expressão nesse lugar, se levando menos a sério. 

MI: E falando em protagonista, você ouve suas próprias músicas? As antigas, as novas…

Gustavo: Raramente. As antigas muito pouco. Quando você está lançando um álbum você escuta bastante. Quando ele sai você escuta bastante. E eu fazia mais isso, sim. Hoje em dia não. Tem uma escuta que retrocede, que é muito autoanalítica, o que eu poderia ter feito melhor, o que foi interessante, o que não foi. E hoje em dia não tem mais muito isso, é mais tipo, aquilo foi recorte da época, eu tô super orgulhoso daquilo. E às vezes vou voltar a escutar, mas cada vez menos. 

MI: Para encerrar, o seu disco fala sobre traçar uma visão autêntica, própria. Quais você acha que são os caminhos pra isso? Você sente que você encontrou a sua ou está chegando lá?

Gustavo: Eu não acho que a gente chegue lá, né? Eu acho que é sempre só pela busca mesmo. Então, esse nome, “I Got My Eyes Fixed”, ele tem uma certa sensação de que alguma coisa foi concluída, mas “I Got My Eyes Fixed” é no sentido de ‘agora eu vou começar a aprender a ver da minha forma’. Sinceramente, filosofia foi a coisa que mais me ajudou, abriu minha mente, me deu esperança, me fez as perguntas mais interessantes. E junto dessa questão toda, dos algoritmos e das informações que a gente absorve, desde moleque, essas codificações, é muito libertador quando você vai contemplando a liberdade e a possibilidade que é de ser único, de não ver as coisas da forma que as pessoas veem. 

Porque isso às vezes pode soar meio autocentrado, egoísta, mas é curiosamente o contrário. É quando você se propõe a enxergar o mundo da sua forma que você consegue respeitar e entender melhor a visão do outro. Então acho que terapia, filosofia.. Bom, a filosofia é meio terapêutica [risos]. Esse trio de filosofia, basquete e terapia tem me feito muito bem. A própria sensação de oficialmente estar em São Paulo há um tempo, ter minha casa com as próprias coisas, não sentir que eu estou sempre indo e vindo. A sensação de ter um lar aqui, eu acho, também me possibilitou a ter algum senso e de alguma visão autêntica de mundo. É isso, eu acho que pra gente realmente enxergar o mundo de outra forma, a gente tem que fazer perguntas melhores, querer ter menos respostas, e ver o que realmente faz sentido pra nós no sentido do bem-estar, no sentido da presença no mundo.

Ouça “I Got My Eyes Fixed” (2023) de Gustavo Bertoni aqui.


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Autor

Escrito por

Maria Luísa Rodrigues

mestranda em comunicação, midióloga de formação e jornalista de profissão. no Minuto Indie desde 2015 e em outros lugares nesse meio tempo.