Em entrevista ao MI, Urias fala sobre seu álbum de estreia, que expressa as diferentes fúrias de sua vivência e as utiliza como motor para seus próximos passos.

Foto destaque e capa do álbum ”FÚRIA” | Créditos: João Arraes (@joaoarraes)

Uma das primeiras ideias gerais sobre quando estudamos a utilização do preto e branco no audiovisual, é de que quando decidimos retirar a cor em cena, passamos a trabalhar com o jogo de luz e o foco da obra passa a ser os diálogos e mensagens através da interação das personagens em cena. Em seu álbum de estreia, Urias utiliza o preto e branco na estética visual como plano de fundo para o foco e ação principal: a fúria. Ao longo das 13 faixas, Urias expressa as diferentes fúrias: de ter seu corpo subestimado, o orgulho de ter que reconhecer um erro e como ela mesmo definiu em entrevista, a fúria de ”muitas pressas”, entre outras.

Sendo o pop a base para construção de sua sonoridade, as letras são afiadas. Se a fúria por muitas vezes é entendida como um tropeço, Urias a utiliza como motor para sair do estado estacionário e dar ação aos seus sonhos e progressos. A pressa é necessária e é requisitada com urgência já que os atrasos não são de sua responsabilidade nem das pessoas do seu recorte. A pressa de ser escutada e humanizada é para ontem.

”Vou botar fogo (Fogo) em nome do meu povo (Ah)
E se não adiantar eu vou fazer de novo (Again)
O medo e a raiva que andam do meu lado (Uh)
Me faz querer vingança quando eu olho pro passado (Again)
Perto do que eu mereço, o que eu peço não é nada (Nada)
Depois de sofrer essa violência organizada (Again)
Não subestimem a minha inteligência
Não sou do tipo que tem paciência (Uh-huh)
Por isso eu grito pulmão afora
Eu quero tudo, e eu quero agora (Me dá, me dá)”

(Trecho de ”Pode Mandar”)

De Uberlândia (MG), Urias conheceu Pabllo Vittar em rolês em comum e desde então, acompanhou a amiga em sua carreira e vida. Segundo a mesma, tudo o que aprendeu sobre música e carreira foi trabalhando no time da Pabllo (para as curioses de plantão, ela está presente nos videoclipes de ”Open Bar” e ”Então Vai”). Em 2018, ela foi convidada para desfilar na SPFW, o que resultou no desenvolvimento de sua carreira como modelo chegando até representar uma das coleções da Ivy Park, marca da Beyoncé.

Mas foi em 2019 que o nome da artista começou a repercutir com mais destaque na música: a faixa ”Diaba” é marcada pela o refrão ”Navalha debaixo da língua, tô pronta pra briga”, em referências as mulheres trans e travesti que colocavam a navalha de baixo da língua caso precisassem se defender de ataques e violência. O videoclipe venceu a categoria de “Melhor Direção de Arte” do Berlin Music Video Awards (BMVA), o qual contava com ”Psysical” da Dua Lipa na lista de indicados.

Em maio de 2021, Urias lançou a primeira parte do álbum, que entrou na nossa lista de melhores álbuns e EP’s brasileiros de 2021 e em janeiro de 2022, ela finalmente disponibilizou o álbum na íntegra. Em menos de 24 horas após o lançamento, Urias tornou-se a primeira preta trans a atingir o topo das vendas de álbuns e a emplacar duas músicas simultaneamente no Top 15 da iTunes BR. Na plataforma ao lado, a faixa ”Tanto Faz” chegou ao 33º lugar na playlist Viral 50 do Spotify Brasil.

O Minuto Indie trocou uma ideia com a Urias sobre os conceitos, referências, as diversas expressões da fúria e claro, um vroom vroom de Maserati.

Urias no show de estreia de ”FÚRIA” no Cine Joia em São Paulo (2022) | Créditos: Ernna Cost (@ernnacost)

Não é ninguém do meu recorte que vai resolver nosso problema que não foi criado por nós.

Minuto Indie: Quando você lançou o a primeira parte do ‘’FÚRIA’’ em maio de 2021, eu fiquei muito feliz por ter escutado seu trabalho, mais especificamente por serem canções que tem como temática a fúria e a raiva. No primeiro momento, pensei que essa temática não era muito usada na música, porém, em um segundo momento, comecei a refletir que na verdade, essa temática é comum em gêneros com sonoridades mais ‘’pesadas’’ como o hardcore, punk, metal, etc. Só que quando você vai analisar, essas bandas são compostas majoritariamente por homens cis e brancos falando sobre uma mesmas perspectivas da raiva. De fato, existem pessoas que estão falando sobre isso, mas quando são outros recortes expressando sobre fúria, a sociedade não se presta na escuta atenta, o que acaba levando por muitas vezes a discursos distorcidos sobre  invalidar ou tentar ensinar o outro em como se comportar e o que sentir. Enfim. Como está sendo a recepção da galera que está te escutando?

Urias: Eu acho que a galera está entendendo. Tive um pouco medo de ser taxada como agressiva, por ser preta e trans, as pessoas sempre levam ou para o ”louca” ou para o ”raivosa”. Mas aí pensei: ”Cara, eu preciso me humanizar, eu estou sentindo isso, eu sou gente também!”. Eu preciso falar sobre isso. Minha raiva vem de um lugar que não dá para resolver se eu não falar sobre. As pessoas que podem resolver isso, talvez elas nunca vão escutar sobre, entendeu? Não é ninguém do meu recorte que vai resolver nosso problema que não foi criado por nós. Eu acho que agora as pessoas estão ouvindo, estão entendendo de onde vem essa raiva.

MI: O seu primeiro EP ‘’Urias’’ (2019) tem uma sonoridade mais eletrônico para pista, uma jeitão remix. Em ‘’FÚRIA’’ (2022), principalmente na ‘’PT.1’’, foi impossível não pensar em hyperpop com alguns toques industriais. Como vocês chegaram nessa sonoridade?

Urias: Nós meio que fomos misturando a personalidades de todo mundo que estava trabalhando no álbum, e o que queríamos fazer foi meio que dar o próximo passo que seria a sonoridade. No álbum tem muita coisa que a gente quis trabalhar e eu fui sem medo. Falei: ”Não vou ficar tentando me encaixar”, porque tem gente que me coloca como rap, hip hop ou pop e enfim. Então pensei comigo: ‘’Vou ser minha cena’’, porque se não, vou ser invalidada numa cena, daí em outra cena também, porque alguns consideram e outros não. Não vou ficar procurando esse tipo de aprovação dos outros. Faço música e aí me joguei.

MI: Como você entende o som do seu trabalho?

Urias: Eu coloco como pop, porque, me encaixo em todos aqueles pré-requisitos da mulher e tals: dançarinas e coreografia, videoclipe com elementos pop e etc., mas não sou só isso. É evidente, está lá no meu álbum, mas acho que nenhum artista é só uma coisa. Fui seguindo as coisas e o rolê da raiva. Por exemplo, em ”Maserati” eu queria falar sobre como o sexo, para mim, é uma forma de aliviar a raiva, então escrevemos uma música sobre isso e por aí vai. Todas as outras músicas foram vindo e os ritmos também. Não foi: ”Ah, vou lançar, tem que ter uma assim, outra assim…’’. As coisas foram surgindo e eu fui encaixando tanto na estética visual quanto na sonora.

MI: Sobre a faixa e videoclipe para ”Racha”, realmente existe uma influência de ”Vroom Vroom” da Charli XCX?

Urias: Com certeza! Nossa… Como vou negar? Não tem como! (risos) Para falar de carro, videoclipe em preto e branco, foi inspiração total. Eu adoro muito Charli XCX e esse EP dela (Vroom Vroom EP), para mim é tudo!

MI: E a faixa de ”Foi Mal” tem o sample de ”Chamber of Reflection” do Mac DeMarco?

Urias: Tem que ver com os meninos (Brabo Music Team), porque, a gente monta uma playlist de várias músicas que seriam referências para música, daí teria que ver de onde eles tiraram o sample. Mas eu creio que sim.

MI:: Eu tenho certeza! (risos) Porque ouvi e pensei ‘’Alguém sampleou Mac DeMarco para fazer uma batida num ritmo mais reggae’’, já que o Mac Demarco é mais um lo-fi e indie rock.

Urias: É porque falei pros meninos: ”Preciso de uma música para ouvir chapada e triste”. Aí fomos chegando num consenso. Essa é a vibe: reflexiva, parada, ouvindo uma música muito chapada, muito triste, às vezes chora, às vezes não.

MI: Tinha ficado em dúvida sobre o que era essa fúria do ”Foi Mal”. Só que em uma entrevista, você comentou que era sobre um: ‘’Eu não quero pedir desculpas, mas eu vou ter que pedir”.

Urias: É que na época eu estava passando um babado que era assim: eu tinha pisado na bola com o cara com quem estava e ele era muito incrível. Só que eu não sabia as regras para ter um relacionamento, porque era o meu primeiro e único namoro, então eu não sabia quais eram as regras exatas de um relacionamento. Na minha cabeça, eu não tinha que pedir desculpa, porque, eu não sabia e não estava acostumada com esse tipo de coisa. Sempre me relacionei às escondidas com os caras, porque, eles nunca quiseram nada, aquela grande e bela história da pessoa trans no babado. E aí que eu não sabia que tinha sido errada, então na minha cabeça eu não tinha que pedir desculpas, porque ele tinha que entender o meu recorte: ”Ah, ela não precisa pedir desculpa, porque ela não sabia”. Só que eu também sabia que se eu não pedisse desculpas, as coisas não iam andar. Então é meio que é essa coisa de: ”Ah, vou ter que pedir desculpa… Foi mal”, entendeu? Tanto que na música inteira eu canto ”Foi mal, foi mal” mas não digo que eu vou mudar, é tipo: ‘’Foi mal eu ser assim!’’.

MI: Sou cheia das teorias como você já pode perceber (risos), e ainda sobre ”Foi Mal”, no videoclipe você usa um vestido maravilhoso que me lembrou do videoclipe de ‘’Pagan Poetry’’ da Björk. Fiquei pensando se era uma referência também.

Urias: Não tem nada haver com esse negócio da Björk (risos). Na época, tinha saído a coleção primavera-verão no Estados Unidos e na Europa e as marcas estavam usando muito cristal. Aí eu falei: ”Preciso meter um cristalzão aqui’’, porque o babado já é preto e branco, então vai vir um brilho, uma textura e etc. Por ser tudo em preto e branco, sempre pensamos muito nas texturas das coisas. Por isso em ”Racha” tem muito látex, para dar uma textura diferenciada, mais dark e em ”Foi Mal”, foi essa coisa dos cristais. Foram por motivos fashionistas e não da Björk e Alexander McQueen. Calma que eu vou chegar lá ainda! Você tá me botando num patamar muito alto, mulher! Meu deus!

MI: Ué! Por que não? Vamos lá! Anota num caderninho as próximas referências. Dá tempo (risos). Outra coisa que me chamou atenção são os trechos das canções em espanhol, tanto no ‘’FÚRIA’’ quanto no single ‘’Shonda D+’’ da Tássia Reis com Preta Ary e EVEHIVE.

Urias: Sempre fui muito fã de RBD e sempre gostei muito da língua. Durante a pandemia, comecei a estudar várias coisas como canto, dança e espanhol, o qual fiquei muito fissurada. Daí, a Kali Uchis tinha lançado o  álbum ‘’Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)’’ e eu estava por tudo no espanhol, menina! Falei: ”Tenho que lançar uma música em espanhol!”. E a gente sabe que o espanhol também é um braço para você conseguir fazer o seu trabalho alcançar outros países. Então tudo meio que foi se encaixando e falei: ‘’Vou fazer isso porque eu estou com vontade’’. Estou na vibe e vai me fazer bem de alguma maneira.

MI: Encaixou bem, misturando as paradas.

Urias: Encaixou super bem. No começo não me achava uma compositora, mesmo tendo composto todo os babados desde o começo. Só que eu não batia no peito e falava: ”Compositora!”. E nesse álbum eu meio que me empodero desse lado. Estou letras mil aí até em espanhol, estou amando.

Tudo em torno do álbum gira em torno disso, de sentimentos que desencadearam a raiva ou que desencadearam a partir da raiva.

MI: Boa parte do ‘’FÚRIA’’ tem um ritmo fritação, no sentindo de serem músicas agitadas. Mas ‘’Foi Mal’’ e ‘’Tanto Faz’’ são diferentes, estão expondo sentimentos mais vulneráveis em um ritmo de uma baladinha romântica. Você esperava que essas duas fossem ter um destaque na repercussão?

Urias: Estava 100% nervosa de lançar essas músicas, porque, meu público nunca tinha me visto lançar músicas assim e cantando desse jeito. No lançamento de ”Foi Mal” eu estava muito nervosa, mas já em ”Tanto Faz” eu já tinha entendido que as pessoas gostavam disso e que ia dar certo. A faixa ”Explícito” foi a primeira do álbum assim a ser escrita e ‘’Tanto Faz’’ também era antiga e eu já sabia que ela entraria no meu álbum, só não sabia que ia ser single, mas ainda bem que foi! (risos) Porque pegou várias posições nos virais do Spotify. Fiquei muito feliz. Quando você mostra esse lado que as pessoas não estão esperando, porque assim, as músicas são sempre muito brava, muito empoderada, tipo: ”Ah caralho! Sou a fodona!” (risos), e aí do nada, é um: ”Ah… tô tão sozinha”, a intenção era realmente me humanizar, entendeu? Humanizar corpos como o meu. No geral é algo como: ”Eu sinto também”. O ”Tanto Faz” é meio que uma raiva de ter que estar sozinha por conta de um rolê que eu não posso fazer nada. Uma raiva de ter que passar por essa solidão e entender o porquê você passa e saber que a culpa não é sua. Teve uma hora que eu fiquei com mó raiva do tipo: ”Pô mó bonita e mó gostosa, famosa, passando por uns negócios aí que nossa…”, sabe? Tudo em torno do álbum gira em torno disso, de sentimentos que desencadearam a raiva ou que desencadearam a partir da raiva, e ”Tanto Faz” é essa raiva de ter que estar sozinha, misturada com a tristeza da solidão, essa coisa de: ”Aí que merda! Por quê?!” (risos)

MI: Qual música você gostaria que se tornasse destaque?

Urias: Aí meu Deus… Eu tenho muitas favoritas, mas gosto de ”Pode Mandar” com o Vírus, porque, estamos falando de muitas coisas, de muita coisa que não são ditas. Muitos medos, muitas raivas e muita pressa e pressas diferentes.

MI: Já que você e a Pabllo Vittar vão estar em turnê pela Europa em breve, vamos imaginar que vocês estão dando um rolê por lá em uma Maserati e tem mais 3 lugares. Quem vocês convidam pra dar uma volta e qual seria a trilha sonora?

Urias: Eu já pegava essa Maserati e já vendia! (risos) Estou nem aí para ninguém não, deixava todo mundo lá! (risos)

MI: Para finalizar, o festival ‘’5 Bandas’’ do Minuto Indie é conhecido por apresentar artistas e bandas brasileiras para galera prestar atenção. Se você pudesse montar um lineup, quais artistas você gostaria que o pessoal escutasse?

Urias: Tem a Paige, que é uma cantora de Belo Horizonte. Tem também o Vyne, que é um rapper de Uberlândia e ele é tudo, muito bom. Outro também seria o PJ, que é um rapper de Belo Horizonte. Tem outros tipos de artistas também, arte performance como a Castiel Vitorino que é do Espírito Santo e é muito incrível o trabalho dela. Tem a Ode também, que é diretora criativa, tem 23 anos, já teve exposição no MASP, já foi diretora de revista sul-africana, um monte de coisa que ela já fez e é de Minas Gerias. Mas outra de música seria a Ventura Profana, que é uma artista que eu amo muito.

FICHA TÉNICA ”FÚRIA”

Vocal: Urias
Participação: Vírus, Hodari, Monna Brutal e Ebony
Letras: Urias, Zebu, Vírus, Maffalda, Gorky, Number Teddie, Hodari, Turbotito, Rafael Stefanini, Arthur Marques, Iberê Fortes, Charm Mone, Monna Brutal e Ebony
Produção musical: Brabo
Teclado: Zebu
Bateria: Maffalda
Baixo: Gorky e Turbotito
Guitarra: Gorky

 

Ouça agora

 

Mais notícias no Minuto Indie. Curta nossa página no Facebook. Siga nosso Instagram. Saiba mais em nosso Twitter.

Autor

  • Binha Sakata

    aka Binha, sou apaixonade por música e audiovisual e resolvi unir esses dois elementos para pesquisar e falar sobre música, principalmente a independente brasileira e internacional. Em 2015, comecei a fotografar shows, em 2019 entrei para o projeto audiovisual e podcast de entrevistas Culture-se (@pculturese) e em 2020 criei o programa musical de rádio DSCOTECA (@dscoteca). No Minuto Indie, já fiz de roteiros a apresentações e conteúdos.

Escrito por

Binha Sakata

aka Binha, sou apaixonade por música e audiovisual e resolvi unir esses dois elementos para pesquisar e falar sobre música, principalmente a independente brasileira e internacional. Em 2015, comecei a fotografar shows, em 2019 entrei para o projeto audiovisual e podcast de entrevistas Culture-se (@pculturese) e em 2020 criei o programa musical de rádio DSCOTECA (@dscoteca). No Minuto Indie, já fiz de roteiros a apresentações e conteúdos.