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Uma seleção de discos tropicalistas para nos lembrar que a arte sempre foi resistente em tempos difíceis.
As manifestações do último sete de setembro escancararam mais o abismo em que nos encontramos. Não bastasse uma pandemia que assolou o mundo, ainda somos assombrados por um presidente que ataca a própria instituição que ele deveria ser a representação maior. Em um outro momento anterior bem turbulento da nossa história, diversos artistas hoje consagrados defenderam as cores da nossa bandeira através da arte e criaram o movimento tropicalista. Ele passou por diferentes expressões como artes plásticas, cinema e música. Na lista a seguir, selecionamos alguns discos importantes para o movimento e que valem a pena serem ouvidos no cenário atual, em que dá receio sair por aí ostentando as cores da nossa própria bandeira e ser confundido com algum golpista.
Tropicalia ou Panis et Circenses (1968)

Se você tiver que escolher apenas um disco dessa lista para ouvir, a melhor escolha seria Tropicália ou Panis et Circensis (1968). Impressionado com a qualidade do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles que havia sido lançado no ano anterior, Gilberto Gil teve a ideia de fazer uma versão brasileira da obra. Ele convidou então seus amigos e ícones da música brasileira da época como Caetano Veloso, Nara Leão, Os Mutantes, entre outros, para fazer uma mistura. O disco tem então um misto de canções populares, psicodelia e referências ao modernismo que vão da capa ao seu conteúdo. Uma pérola nacional.
“Na revolução do tropicalismo valia tudo: misturar vanguarda com tradicional, o erudito com o popular, e o regional com o urbano, mas, no final, a cara tinha que ser bem brasileira. Geleia Geral, de Gil e Torquato Neto, definia bem a filosofia antropofagista da brigada tropicalista.” trecho de Os 100 Maiores Momentos da Música Brasileira, segundo a revista Rolling Stone.
Caetano Veloso (1967), de Caetano Veloso
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Esse é o segundo álbum de Caetano Veloso e é um dos mais importantes para a fundação do movimento tropicalista. O disco tem uma mistura de rock psicodélico, orquestra e arranjos de metais. Agradou e muito os adolescentes da época, mas nem tanto a ditadura que assolava o país. Tanto que o músico se tornou anos depois um artista perigoso demais para ficar no Brasil. Pouco tempo depois Caetano e Gilberto Gil seriam enviados para o exilo em Londres entre 1969 e 1972. Durante o período, ele ainda gravaria outro clássico do também chamado Caetano Veloso (1971) que tem canções como London, London e uma versão de Asa Branca, clássico de Luiz Gonzaga.
“A música é impressionante – como no tremulante rock psicodélico Clarisse, nas mágicas e complexas mudanças de acordes de Clara e em Soy Loco Por Ti, América, um vivo tributo a Che Guevara – e mesmo quem não fala uma palavra em português fica intrigado com a ‘poesia concreta’ das letras de Caetano Veloso”, trecho de 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer.
Gilberto Gil (1968), de Gilberto Gil
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O segundo disco de Gilberto Gil também faz parte das bases do tropicalismo. Conta com a participação de Os Mutantes e canções compostas, além do próprio Gil, Torquato Neto e Bruno Ferreira. O ponto alto do disco é, sem dúvida, a canção Domingo no Parque. A música conta a história de um triângulo amoroso que acabou em tragédia e é um dos grandes hinos da música popular brasileira. Assistir à apresentação dela nos festivais da época traz uma sensação quase catártica.
“Ainda com essas ideias [do Tropicalismo] na cabeça , Gil convocou mais uma vez os Mutantes para mais um trabalho juntos. O baiano havia conhecido o trio por intermédio do maestro Rogério Duprat, que sugeriu aqueles jovens roqueiros paulistanos para acompanhar Gil em Domingo no Parque, executada no III Festival da Música Popular Brasileira. A parceria deu tão certo que eles voltaram a trocar figurinhas para o álbum iria suceder Louvação, álbum de estreia de Gil. Apenas um ano separa os dois primeiros discos daquele compositor ainda desconhecido, mas é certo que ele queria deixar claro que estava aberto a muitas possibilidades.” trecho de Música em Cores: Gilberto Gil (1968), de Marcos Sampaio.
Gal a Todo Vapor (1971), de Gal Costa
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O que não podia faltar nessa lista era um registro ao vivo. Na época em que esses álbuns foram lançados, o país e nem o mundo eram tão midiáticos quanto atualmente e muito dos atos de resistência da cultura brasileira se dava nos palcos. Gal Costa foi um dos nomes importantes para manter a contra cultura viva durante os anos de exílio dos seus amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ela se apresentou então no espetáculo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, que foi sucesso de público e crítica. As apresentações deram origem ao disco Gal a Todo Vapor (1971), que traz bem o espírito de uma apresentação ao vivo, incluindo erros na hora do show.
“Nesse show memorável, Gal lançou Luiz Melodia, cantando Pérola Negra, e deu projeção a Jards Macalé (Vapor Barato), nomes ainda pouco conhecidos na cena pop brasileira. Gravado ao vivo, o show deu origem a um cultuado álbum duplo, até hoje um dos títulos mais reverenciados da discografia de Gal.” trecho de Os 100 Maiores Momentos da Música Brasileira, segundo a revista Rolling Stone.
Os Mutantes (1968), Os Mutantes
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Antes de ouvir esse disco completo a primeira vez a uns anos, por alguma razão eu misturava Mutantes com Secos e Molhados. Talvez seja pela excentricidade das duas bandas e pelo fato de suas canções terem sido regravadas por muitos artistas ao longo dos anos e fica, à primeira vista, difícil saber quem as canta originalmente. O disco de estreia do conjunto foi lançado também em meio a esse cenário caótico de ditadura militar e sendo influenciado pelos últimos lançamentos dos Beatles, mas fazendo as coisas a seu próprio modo. Inicialmente o grupo fazia parte do programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von, da TV Record. Batizado pelo próprio Ronnie Von de Os Mutantes, inspirado no livro O Império dos Mutantes, de Stefan Wul, eles deixaram de ser uma banda de acompanhamento e passaram a influenciar o rock feito no Brasil.
“Quer saber de uma esquisitice? Dois minutos depois de começar a faixa de abertura, Panis Et Circenses, o toca-discos parece diminuir a rotação e parar. Quando a pessoa levanta para ver o que aconteceu, o aparelho volta à vida. E quando senta novamente, a música termina com os ruídos da banda fazendo uma refeição – uma sonoplastia da sala de jantar mencionada na letra “. trecho de 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer.
Grande Liquidação (1968), de Tom Zé
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Como diz o meu pai, esse é sem dúvida o mais maluco de todos. Toda vez que assisto à alguma entrevista dele por aí, eu fico meio perdido de tanta informação e psicodelia nas suas palavras. O artista havia participado também do disco Tropicalia ou Panis et Circensis, como a maioria dos citados aqui, com a canção Parque Industrial interpretada por uma mistura de artistas, incluindo ele próprio. A canção também está presente em Grande Liquidação (1968) ao lado de outros clássicos do cantor como São São Paulo. O disco teve inspiração na chegada do cantor baiano à cidade de São Paulo.
“Tom Zé foi buscar no comportamento da sociedade a inspiração para as letras de Grande Liquidação. Boa parte das músicas surgiu a partir das experiências do cantor em São Paulo. ‘O disco foi todo feito com o que eu via na rua. Tentei refletir como era o cotidiano de São Paulo no fim dos anos 1960’, lembra.” trecho de entrevista de Tom Zé sobre os 50 anos do lançamento do álbum.
Jorge Ben (1969), Jorge Ben
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Jorge já estava a um tempo tentando algumas coisas diferentes no violão, porém, ainda sem sucesso de encontrar algum grupo que conseguisse acompanhá-lo. Foi quando ele começou a tocar na Boate Jogral que encontrou no Trio Mocotó, composto por Fritz Escovão, João Parahyba e Nereu Gargalo, uma parceria ideal. O trio eram músicos fixos da casa, como era comum na época, e Jorge acabou aparecendo com frequência por lá. Foi daí que nasceu a parceria de sucesso que deu origem ao disco.
“Dessa união no palco do Jogral nasceu o samba-rock (ou suingue, balanço) e clássicos da música brasileira como Que pena, Take It Easy My Brother Charles e País Tropical. ‘Se o Jorge é o pai do balanço, a gente é a mãe’, diz Nereu Gargalo.” trecho de Os 100 Maiores Momentos da Música Brasileira, segundo a revista Rolling Stone.
Desde que comecei a escrever esse texto, às luzes do então recente acontecimento de sete de setembro, bastante coisa aconteceu. Teve até ministro da saúde fazendo gestos obscenos nos Estados Unidos e discurso vergonhoso do presidente na ONU. Mas o que importa dizer aqui é que essas pessoas e muito menos esse governo não nos representa. Nós somos muito maiores e temos uma cultura muito mais rica e que certamente essas pessoas nunca nem pararam para conhecer. Esse momento vai passar, está sendo doloroso, mas vai passar e nós, como diz a música de Caetano, vamos seguir vivendo.
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