Mevoi

“Calam as cordas / A música sabia / tudo o que sinto”.

Escolho esse haikai de Jorge Luís Borges para falar, com poesia, de um disco, como quem colocasse para conversar dois seres com algo em comum, mesmo que não se saiba muito bem o que. Talvez o humor distorcido, um senso de beleza, a renúncia ao encaixe. Seja lá o que isso Seja, um nome que se apresenta pela repetição para depois conscientemente voltar a ela, é o primeiro álbum do mevoi, projeto musical-performático do artista Ciro Lubliner, lançado pelo Selo Abbey Roça, produzido em parceria com Rafa Well e as presenças de Hiro Ishikawa (bateria), Henrique Rocha (percussão), João Paulo Paixão (piano) e Diego da Costa (guitarra). Juntos, eles embrulham um pacote lisérgico saboroso como que para presente. Abri-lo fica a gosto da fome de cada um. Um abrir horizontes de paisagens sensoriais, que podem fazer cócegas, desacomodar, mudar os sentidos de lugar.

O intento de libertar-se das definições vem já no título. De saída, lá vai ele dizendo: pode ser o que cada ouvido escolher, e a cada vez reinventar-se em outras coisas. Aqui não há caracterizações fechadas, mas aproximações variáveis — e desejos, é claro, de soar e ressoar: uuuah-aaahhh, chip-chip-chip e outras onomatopeias inventadas. Mutantes, Bowie, Júpiter Maçã, Mautner, Walter Franco e o declarado Serguei “território sem lei” que batiza a música-single habitam o álbum aqui e ali. Referências que irradiam presenças e ao mesmo tempo importam pouco para a experiência, pois esses e tantos outros artistas que povoaram a criação depositam suas sonoridades como quem deixa pedaços de pão numa trilha que vai voltar a ser percorrida inúmeras vezes. Quem não passar por ali, porém, talvez se perca, e é muito bem-vindo que seja assim. Como em toda prática de liberdade, é preciso implicar-se nela. Reconheça. Desconheça. Repita. De novo!

É nesse sentido que o disco ao mesmo tempo des-parece e se assemelha com coisas já vistas, ouvidas, sentidas. Essa percepção não furta a pretensa originalidade (que muitos perseguem como a um mito vaidoso; mas não aqui). Ao contrário: é uma vontade de iluminá-la, talvez ainda mais. Lembrar do que Dorival Caymmi — com quem mevoi poderia se sentar para dividir uma tarde quente e uma cerveja — disse sobre fazer canções. Ele queria criar aquelas que pareciam já estar no mundo há tempos, como alguém que chega primeiro e arruma a cama para quem vem depois se deitar. Não se cria com isso um lugar de conforto, mas uma perspectiva para ver bem. E melhor.

Pontuar que Ciro é pesquisador, poeta e tradutor é mera formalidade de rotulação. O que ele faz aqui é exercer um ofício amplo: o de ser. Portanto, o ato contínuo e inevitável de estranhar-se. Tendo boca e olhos e nariz e mãos e orelhas de artista, ele estira musicalmente os sentidos como se fossem braços abertos, só para ver até onde conseguem alcançar. E alcançam. Longe. Para o ouvinte disposto, terá sempre um pouco de cada: sons, cheiros, sabores, visões (y mirações). O toque, como até poderia deixar de ser, mas não deixa, aparece aqui em sua acepção dupla: do tato e do som, que atravessa de uma vez as peles e os ouvidos. Mas depende de cada qual, do outro lado, à escuta. O sexto e o sétimo sentidos provavelmente virão, é só soltar bem as mãos. E as sinapses.

A primeira faixa, Voo, carrega a responsabilidade de comunicar a que vieram as outras oito, o que se pressente pela letra quase escondida entre riffs marcados, mistérios sonoros e vocais sintetizados. Uma música insinuação, um ensaio do que vem adiante. “No puro ar / voo, voar”. Como nesses versos, Seja lá o que isso Seja sugere um percurso circular de vai-e-vem. Mas, como em uma espiral, quem passa de novo pelo mesmo lugar não passa igual. Um grito quase silencioso de abertura. Como aquele de Walter Franco em “Mixturação”, é um berro que quer expurgar, deixar escorrer. É dele que fluem as outras canções, deslizando para muitos e diferentes lugares; um passeio que contém melancolia e também energia. Um dia que passa entre algumas nuvens e aberturas ensolaradas, ora dentro, ora fora de casa. Esperando as trovoadas, mas também o verão.

Driblando o clima, Errei faz as honras do passeio ao ar livre — espontâneo e involuntário, ao sabor dos sóis e das ventanias. Brincando com o lugar da palavra entre verbo e substantivo, a música deixa quem a escuta com impressões na ponta da língua: “errar” e “errância” como possibilidades abertas. Nos refrões que esticam o som da palavra, “eee-Hei” se transforma também em interjeição, como se puxasse a orelha de quem ouve para atentar às outras formas das coisas. Sair do lugar, chacoalhar o já visto.

As três faixas que ganharam clipes — Serguei, Velho normal e Atávica — podem ser, cada uma a seu modo, representações dos alter-egos de mevoi. Libertário technicolor, psicodélico acinzentado e entranhado de cores quentes. Adjetivos, como qualquer outro, arbitrários e insuficientes para dizer as coisas inteiras. (In)definições que escapam de si mesmas. No minuto seguinte, já seriam outras e outros. Enquanto lê aqui, duvide bastante e ouça o eco entoado pelo disco: de-peeen-deee. Três canções-epifania que não pretendem ser totais, mas encontrar-se em suas partes.

Depois do mergulho nos litorais de encostas ancestrais de Atávica, vem um sopro inesperado. Assim chega O Mundo que ri, ousadamente a faixa mais brincante do álbum, a voz dissonante que se permite caçoar de tudo e lembrar de se levar menos a sério. Tá-tararatá! Tá-tararatatá. Na dúvida, é cantarolar sozinho e evitar cair em desgraça. Como fazem as crianças, os loucos, os poetas: “olhar mais nos olhos dos outros / pra enxergar o que eles não querem ver”. Vale dançar, fechar os olhos, estalar os dedos. Só não vale cair no ridículo, mas se quiser pode. Com ela, é hora de gostar de música pelo que a música faz, passear o corpo-mente por onde quiser ir, inventar no caminho outros caminhos.

mevoi, uma palavra sem idioma que anuncia que vai embora, acaba por ficar, só para contestar as expectativas. E vai ficando mais a cada vez que a experienciamos. Até grudar, doce, em cima da língua. Um lembrete, sem querer, de que na vida o melhor que podemos fazer é passar por ela, e deixar que ela passe por nós, na mesma medida. Com sorte, pelo tempo necessário para que os sentidos se façam. E alguma mágica aconteça.

Renata Penzani
Escritora, pesquisadora e jornalista

Mevoi

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Autor

  • Eduardo da Costa

    Redator do site Minuto Indie. Graduado em jornalismo e pós-graduado em marketing digital e comunicação para redes sociais, amante de música, esportes, cinema e fotógrafo por hobby. Siga-me nas redes sociais: Facebook: duffnfedanfe; Instagram: nfedanfe; Twitter: _duffe; Last.Fm: duffhc3m; Pinterest: duffe_;

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Eduardo da Costa

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