O que é a lista trans free, medida social aplicada nos festivais de música brasileiros? | Minuto Indie | Ilustração

Em 2023, pelo menos 15 festivais brasileiros aplicaram a lista trans free, uma medida política que promove a inserção de forma gratuita de pessoas trans, travestis e não-bináries.

Em dezembro de 2023, fomos convidades para o evento de lançamento do line-up do C6 Fest 2024. Durante a sessão de perguntas e respostas pela imprensa, perguntei algo que o público costuma questionar nas redes sociais: vai ter a lista trans e não-binárie free?

A reação foi de silêncio. Um misto de tentar decifrar do que se tratava e como respondê-la. O clima ficou tenso, falaram um pouco de ‘’apoiamos vidas trans’’ e ‘’estamos abertos para saber do que se trata’’. Essa resposta diz mais sobre a mentalidade e comportamento de uma indústria e sociedade do que um caso à parte.

A história da lista trans não é recente e possui reflexões importantes a serem levadas em consideração. A própria aplicação da lista permitiu que houvessem mudanças significativas na porcentagem de recortes do público e novas oportunidades de emprego para as pessoas trans, travestis e não-bináries no mercado de eventos. 

Quem nos apresenta este cenário de uma mudança em curso são pessoas que fizeram parte dessa história no Brasil, atuando em diferentes pontas deste movimento.

Ana Giselle – A TRANSÄLIEN, Iná Odara, Ana Garcia e Rainara Ferreira Carvalho | Créditos (na ordem): Danilo Sorrino, acervo Iná Odara, Hannah Carvalho e acervo Rainara Ferreira Carvalho.

Ana Giselle, A TRANSÄLIEN, travesti e preta, de Camaragibe (PE), residente em São Paulo (SP). É uma artista interdisciplinar e de transmídia e idealizadora da Coletividade MARSHA!. É uma das responsáveis pela criação da lista trans free.

Iná Odara, travesti e preta, é do Rio de Janeiro (RJ) e está doutorando em Sociologia pela UERJ. Atualmente trabalha na Africa Creative e participa do LabJaca. Em 2023, gerenciou 5 listas trans free: GRLS!, Queremos!, Rock The Mountain e Primavera Sound São Paulo.

Ana Garcia é de Recife (PE) e é criadora e CEO do festival Coquetel Molotov, o primeiro festival brasileiro a adotar a lista trans free como uma política de inclusão social no evento.

Rainara Ferreira Carvalho, não-binárie, é de Belém (PA), tem 22 anos e é estudante de medicina.

A reportagem a seguir é fruto de pesquisa e entrevista com Ana Giselle, Iná Odará, Ana Garcia e Rainara Ferreira Carvalho para colocar em pauta, além da lista, a importância dessa medida nos espaços de cultura e entretenimento.

COMO SURGIU A LISTA TRANS FREE?

Em 2024, a lista trans free completará nove anos desde sua criação. Essa história começou em 2015, em Recife, Pernambuco, a partir da iniciativa de quatro amigas travestis: Ana Flor Fernandes, Ana Giselle, Maria Clara Araújo e Mayara Cajueiro.

Ana Flor Fernandes, Ana Giselle, Maria Clara Araújo e Mayara Cajueiro. | Créditos (na ordem): Reprodução Sesc Santana, acervo de A TRANSÄLIEN, reprodução Linkedin Maria Clara Araújo e acervo de A TRANSÄLIEN.

Ana Giselle comenta que o período de criação coincidiu com o início da sua carreira artística e profissional. Na época, ela foi convidada por amigos para discotecar em uma festa em que eles estavam produzindo. A proposta deu tão certo que, na mesma semana, Ana Giselle foi convidada para discotecar em outras festas. Apesar da conquista individual e de uma nova oportunidade em sua vida, Ana Giselle começou a refletir sobre a sua presença, ao mesmo tempo em que havia a ausência de suas semelhantes.

‘’Como tudo aconteceu muito rápido nesse início, naturalmente eu fui sentindo cada vez mais a ausência das minhas semelhantes, porque, por via de regra, ou eu era a única travesti do espaço ou éramos eu e as minhas três amigas, que também eram amigas desses produtores. Então, quando eu não estava sozinha nesses espaços, eu estava com as minhas amigas, também travestis, também negras: Maria Clara de Araújo, Ana Flor Fernandes e Mayara Cajueiro. E aí a gente falou: ‘Não, isso não tá certo’, porque, desde o início, eu venho de uma periferia, no subúrbio de Camaragibe, e as minhas únicas referências de travestilidade, de transgeneridade eram as putas, as travestis que faziam programa, ou que estavam em situação de rua. 

Há 10, 15 anos atrás, a gente não tinha referência como a gente tem hoje, de Linn da Quebrada, Erika Hilton, todas essas. Ou era a prostituição, ou era, sei lá, nos salões de beleza, Roberta Close e Rogéria. Na medida em que eu fui saindo da minha bolha e começando a estar mais ativa na noite de Recife, comecei a ter uma consciência de classe, de entender que, se por acaso, eu estava dentro de uma festa, era porque alguém me colocou lá dentro, porque muitas vezes, eu não ia ter 10, 15 reais para entrar ali. Quiçá ter mais dinheiro para consumir ali dentro. 

Então, eu compreendia que se aquele espaço estava me contratando para ser um artista, ali dentro, me contratando num lugar de um certo privilégio até de poder estar ali sendo celebrada e ovacionada, etc., não me satisfazia nem conformava que aquele espaço fosse apenas para mim e para as minhas amigas. Teria que ser para todas nós, para mim, para as minhas amigas e para travesti que tá na rua e também para a travesti que não pode estar ali dentro. Porque a gente vai tendo a consciência de causa das penalizações mesmo que a gente sofre por ser quem somos, por viver nesse país com todas as suas mazelas e história sistêmica de intensificação da estratégia necropolítica do extermínio das pessoas travestis e dissidentes desde a ditadura com a Operação Tarântula até hoje. Vamos percebendo esse contexto mais amplo mesmo, sócio político, de fato. 

Eu já intuía naquela época que um lugar que é pra mim precisa ser pra todas, sabe? Então eu acho que esse foi o grande start do Trans Free de falar: ‘A gente precisa se movimentar, criar alguma coisa para que esses espaços também contemplem as nossas e os nossos, a nossa comunidade’, que começou, inclusive na festa que eu produzia em Recife, que se chamava Kebran, essa foi a primeira festa a ter Trans Free.’’

Iná Odará também reforça que, a ausência dessas pessoas, seja no público, no palco e nos bastidores, reflete em suas experiências nesses espaços. ’’Acho que com a insatisfação de me compreender enquanto uma pessoa isolada dentro desses locais e como isso, inclusive, dificulta a possibilidade de uma experiência mais segura ou emotiva mais saudável pra mim.’’

Banner de divulgação da Lista Trans Free no Coquetel Molotov em 2023. | Créditos: Coquetel Molotov

 

Inicialmente, a lista trans free era disponibilizada em festas LGBTQIAP+ em Recife e foi expandida para outros locais no Nordeste. Em 2017, o Coquetel Molotov foi o primeiro festival a aderir à lista. Tudo começou quando o Coquetel convidou a Maria Clara Araújo para ser apresentadora do festival, foi quando Maria sugeriu a proposta de aplicar a lista trans free. Desde então, todas as edições posteriores abriram inscrições para a lista. Ana Garcia comenta que na época, foi algo revolucionário, já que não havia eventos de grande porte fazendo isso.

No mesmo ano, Ana Giselle mudou-se para São Paulo e entrou para a NÁMÍBÌA, coletividade que estava emergindo na época, a partir de Euvira, pseudônimo de Misael Franco, artista baiano. A ideia era criar um coletivo afro-diaspórico de artistas negres, tanto da música eletrônica quanto das artes visuais e da performance, que em sua grande maioria eram migrantes que estavam radicados em São Paulo. 

Ana Giselle entrou para cuidar das questões que diziam respeito às questões da população trans dentro do coletivo, e comenta que: ‘’Foi um choque pra mim chegar em São Paulo e perceber que não existia absolutamente nada similar a isso, parecido com isso em São Paulo. Como eu já tenho uma relação muito próxima com a Mamba Negra, a gente levou isso para lá. E as meninas maravilhosas, como sempre, Cashu e Laura (da Mamba Negra), super compram a ideia na hora sem pestanejar. E a Mamba já era uma grande referência na época, né? Então, consequentemente, as outras festas foram começando a aderir também aos poucos à lista. Chegou num momento em que eu fui residente de todas as festas de música eletrônica de São Paulo como a Mamba Negra, ODD, Caps Lock, Batekoo, Sangra Muda, Silver/Tape, entre 2017 e 2018’’. Atualmente, Ana Giselle não é mais responsável pelas listas, focando em seus projetos artísticos e profissionais.

 

A LISTA TRANS FREE NOS FESTIVAIS DE MÚSICA

Se antes, era super comum que as festas LGBTQIAP+ tivessem a lista, nos últimos anos, espaços que são predominantemente cisgênero e heteronormativo, começaram a aderir, como shows, festivais e teatros, como são os casos do Palácio das Princesas (PE) e o Teatro Oficina Uzyna Uzona (SP), sendo esse último orientado pela Ana Giselle que explicou que: ‘’Tem um formulário super bem elaborado, inclusive, com um texto ali bem elucidado, bem explicativo, pra quem chega até esse formulário.’’

Segundo apuração realizada pelo Minuto Indie, em 2023, pelo menos 15 festivais brasileiros aplicaram a lista trans free. São eles: Afropunk Bahia (BA), Batekoo Festival (SP), Boogie Week (SP), Castro Festival (SP), Coquetel Molotov (PE), Gop Tun Festival (SP), GRLS! (SP), Mada (RN), Mamba Negra Festival (SP), Primavera Sound São Paulo (SP), Psica (PA), Queremos! (RJ), Rock The Mountain (RJ), Sarará (MG) e Sensacional! (MG).

Banners de divulgação da abertura da lista trans free nos festivais Rock The Mountain e Afropunk Bahia. | Créditos: Rock The Mountain e Afropunk Bahia.

Pode-se observar que a maioria tinha limitação no número de vagas. A maioria também aplicava a lista PCD, como foi o caso do Rock The Mountain. O Sensacional! incluiu pessoas interssexo na lista trans free. O Afropunk realizou uma parceria com a Perifa na Lista para levar jovens pretos e/ou periféricos, principalmente que participam de projetos sociais, para ir ao festival. Batekoo e Boogie Week tinham uma lista para pessoas do continente africano que moram no Brasil. Também observamos que o festival GRLS! e o Primavera Sound SP não comunicaram em suas redes sociais sobre a abertura da lista, prejudicando o acesso do público a essa informação.

Para além do Brasil, em Portugal também é aplicado a lista trans free nas festas produzidas por pessoas trans. Também há outros relatos na América Latina.

“Sempre pontuei que a lista trans free é uma política de inserção. E não de isentar de pagar o ingresso porque ‘eu sou bonita’. Tem um contexto sociopolítico histórico, de consciência […] São vários atravessamentos sociais dessa iniciativa. Mas muita gente não entendia isso”, pontua Ana Giselle.

O QUE É LISTA TRANS FREE E COMO FUNCIONA?

A lista trans free é uma medida política o qual promove a inserção de forma gratuita de pessoas trans, travestis e não-bináries nos espaços de socialização, como por exemplo, os de lazer, cultura e entretenimento, sabendo-se que historicamente elus foram excluídos de estarem presentes nesses espaços. Mesmo que a medida seja paliativa, ela busca reparar esse dano social na população.

Em 2021, no Festival Marsha em Monumenta!, em um talk entre A TRANSALIEN e Jovanna Baby, considera a fundadora do Movimento Organizado de Travestis e Transsexuais no Brasil, Jovanna comentou que, nos anos 80, as bilheterias proibiam a venda de ingressos para que as travestis não pudessem assistir aos espetáculos. Na mesma década, houve a implantação da Operação Tarântula, uma operação policial na capital paulista de necropolítica e higienização contra a população trans. 

Atualmente, as listas variam de organização para organização, mas todas se baseiam na autodeclaração. O mais comum é que os festivais anunciem em suas redes sociais sobre a abertura da lista e informem quem está responsável pelo gerenciamento da mesma. As listas normalmente são feitas no Google Forms. Também há casos em que, ao invés do formulário, a pessoa é orientade a entrar em contato com a pessoa responsável via e-mail ou DM nas redes sociais. Geralmente, a inscrição não garante o ingresso e é preciso aguardar a aprovação ou não.

A necessidade de haver um formulário com critérios se deu por questões envolvendo a alta demanda e pela insensibilidade e atrevimento de pessoas cisgênero que instiam em enviar o pedido para a lista. Por conta disso, aumentou-se a responsabilidade de garantir que as pessoas trans, travestis e não-bináries fossem aprovades.

‘’Essa questão dos formulários, dos critérios para se aderir ou entrar na lista, surge justamente a partir do momento em que a proporção da lista, ou seja, da quantidade de pessoas que recorrem até ela cresce absurdamente. No início, eram 30, 50 pessoas no máximo. Lembro da lista da Batekoo que eu fiz que tinha 300 pessoas inscritas. Fui entendendo e percebendo que muitas delas não eram pessoas trans, saca? Que muitas pessoas viam ali um VIP, viam ali um privilégio, uma possibilidade de isenção. 

Sempre pontuei que a lista trans free é uma política de inserção. E não de isentar de pagar o ingresso porque ‘eu sou bonita’. Tem um contexto sociopolítico histórico, de consciência, do porquê pessoas trans, enquanto pessoas que estão na base da pirâmide social no Brasil, portanto, de sucateamento e inacessibilidade de direito à educação, de direito ao próprio acolhimento dentro do seu familiar. Muitas e muites que até hoje são expulsos de casa, que acabam precisando crescer sozinhos para se manter, para se sustentar. 

São vários atravessamentos sociais dessa iniciativa. Mas muita gente não entendia isso. Inclusive precisou haver todo um trabalho de conscientização para esses públicos que simplesmente não conseguiam sair do auge de seus privilégios de se colocar num lugar do outro, porque, realmente muitas pessoas cisgêneras mandavam os nomes para nós.’’ relembra Ana Giselle.

Nos casos em que a pessoa se reconhece nessas identidades, porém, tem acesso aos espaços em questão e condições financeiras para arcar com os custos do ingressos, é solicitado nos formulários de inscrição que, nestes casos, essa pessoa tenha a ciência de não se inscrever para dar essa oportunidade para quem não conseguiria ir sem a lista. A famosa intersecção de consciência de classe, gênero e racialidade.

Ana Giselle pontua que: ‘’A gente tá falando de festas independentes, de movimentos independentes. Então essas festas se pagam através do ingresso, do fortalecimento do público. Também é um capital de giro que precisa haver uma colaboração mútua e recíproca. Portanto, se você de repente é uma pessoa trans que tem a sorte de ter um emprego, de estar estável e de poder pagar para entrar nessa festa, assim o faça. Porque inclusive vai ter pessoas trans que fazem parte dessa festa [trabalhando] que vão ser beneficiadas com isso.’’

Segundo Iná: ‘’Quando eu paro para pensar, ainda mais, em quais são os tipos de pessoas que estão frequentando… No Afropunk, 89% das pessoas que se candidataram à lista eram pessoas negras e outros festivais, normalmente, a maior parte são pessoas negras. Temos um indicativo de que a maior parte das pessoas que requerem ou precisam requerir o ingresso, são a população trans negra. Já com outros acréscimos de marginalidade anteriores a questões de gênero ou sexualidade, como a de classe.’

QUANTO DOS INGRESSOS DE FESTIVAIS SÃO DESTINADOS PARA A LISTA?

Segundo apuração realizada para esta reportagem, entre os 15 festivais que aplicaram com limitação de vagas em 2023, o número variou entre 20 a 400 ingressos por dia de festival. Se, por exemplo, um festival com lotação de 30 mil pessoas destinasse 1% dos ingressos para a lista, dariam 300 ingressos. Não é a realidade que os dados apresentam.

Como o Primavera Sound São Paulo não comunicou em suas redes sociais sobre a abertura da lista, Iná Odará, que estava responsável pela lista trans free, realizou a postagem em seu perfil no X (antigo Twitter). | Créditos: Iná Odara


No caso do GRLS! e Primavera Sound São Paulo – que não são eventos independentes, mas ambos grandes festivais realizados pela T4F – a produtora destinou 20 ingressos por dia do GRLS! para es moradores da Casa 1 (Centro de Cultura e Acolhimento LGBT+), enquanto disponibilizou apenas 30 ingressos por dia para o Primavera Sound São Paulo.

 

‘’É muito ruim acabar sendo eu, a pessoa que olha e tem que fazer um filtro do ‘Essa pessoa vai, essa pessoa não vai’. Existe um outro trabalho psicológico que é você ter que lidar com as respostas de pessoas que são parecidas com você, que passam coisas parecidas e você é meio que obrigada a ter que criar critérios para hierarquizar isso, porque os festivais ainda não conseguem disponibilizar mais.’’, comenta Iná Odara.

O festival Psica foi o único da lista que divulgou que as vagas seriam ilimitadas. Rainara se inscreveu e conseguir ir. Elu conta que conheceu a lista trans free através da postagem do festival e que já havia ido em festas através da lista. ‘’Foi uma ótima experiência. O festival inteiro, nessa edição, foi incrível, e eles são muito inclusivos e trazem muita representatividade. Acho que é um exemplo de festival, de verdade. Por eu ser não-binário e ter passibilidade, sempre fico hesitante de não me considerarem ‘trans suficiente’.

No caso do Psica, eles fizeram com apoio da Rede Paraense de Pessoas Trans. A gente tinha que mandar uma DM solicitando a inscrição (creio que para pessoas cis oportunistas não pegarem o benefício). Eu enviei com meus dados e rapidamente recebi a resposta me aceitando. Na entrada do festival, tinha uma parte separada pra lista e checavam a nossa identidade. O nome morto só era informado por conta do RG, mas era sigiloso. Como eu uso meu nome de batismo, acabei não passando por esse tipo de trâmite, então não sei informar direito sobre. Em nenhum momento mesmo sofri descriminação da organização.’’ descreve Rainara.

‘’AMIGA, MUITO OBRIGADA. ESSE É O PRIMEIRO FESTIVAL QUE FUI NA MINHA VIDA”.

Com a retomada dos eventos no pós-pandemia e o aumento do número de festivais, os próprios eventos e portais promoveram exaustivamente a narrativa de como a experiência em ir a um festival é incrível e vale a pena. Mas para muitas pessoas, essa é a primeira vez indo a um evento como esses. 

‘’Foi no Rio de Janeiro que eu acho que senti o baque (de gerenciar a lista). Foi a hora que eu tava conversando com um dos chefes do Queremos! no pós-show e um rapaz que eu não conhecia, veio falar comigo e falou na frente dele: ”Amiga, muito obrigada. Esse é o primeiro festival que venho na minha vida”. 

Isso foi um baque muito grande para mim, porque, hoje em dia, eu me encontro numa condição que me permite estar nesses espaços de entretenimento. E eu entendo que ainda é raro ter pessoas trans, a própria população cisgênera negra ou a própria população de pessoas com algum tipo de deficiência ou debilidade, essas pessoas ainda têm muita dificuldade de estar nesses espaços. Então, ouvir isso faz com que eu sinta que o meu trabalho teve algum retorno mínimo decente. Vê que essas pessoas estão em algum grau conseguindo.

Porque eu acho que é importante parar pra pensar que ok, a gente pode dar um ingresso de graça. Mas existe todo um outro circuito dentro da estrutura de um festival que dificulta as coisas, seja locomoção, seja as pessoas conseguirem pagar alguma coisa ali dentro. Ir para uma festa já é caro, mesmo podendo sair pra comprar um cachorro-quente e entrar e voltar para a festa. Um festival é muito mais caro. Um hambúrguer que você paga 10 reais num x-tudo da vida, da rua, lá dentro [do evento], tá uns 30 reais. Então, quando a gente para pra pensar em um processo de lista trans, ou lista de acessibilidade, a gente consegue, talvez, cortar um grande processo do caminho.’’

“Precisamos compreender que existem gargalos sociais que vão muito mais além do quesito de renda. Existem gargalos do pertencimento e da confiança de você estar nesse espaço”, ressalta Iná.

Nos formulários que Iná desenvolveu, haviam duas perguntas que explicam a ausência dessa parcela do público nos festivais. ‘’Ter que lidar com alguns critérios de seleção é muito denso, porque, normalmente, tem uma pergunta nas listas que é assim: ‘Você já foi em alguma edição deste festival? Se sim, qual ano ou qual edição? E se não, por que?’ E duas questões aparecem muito dentro desse ‘não’ e ’o porquê’. 

1) É a questão financeira, que é uma questão no Brasil em geral. A gente compreende que a questão de renda é um empecilho no processo de acesso ao entretenimento no Brasil de maneira geral. 2) Tinham muitas pessoas falando: ‘Não me sinto à vontade para estar nesses espaços. Enquanto um corpo trans, eu não acho que aquele lugar iria me deixar contente ou faria com que eu aproveitasse a experiência de uma maneira correta’. Aí tinha gente que falava: ‘Agora eu tô tentando, porque vai ter uma lista. Eu sei que vai ter mais pessoas trans’. 

Precisamos compreender que existem gargalos sociais que vão muito mais além do quesito de renda. Existem gargalos do pertencimento e da confiança de você estar nesse espaço. E aí, a gente precisa olhar para como é o funcionamento estrutural desses lugares. Porque é isso, às vezes ninguém precisa te chamar de traveco ou de aberração ou de nada. Às vezes um olhar basta para minar todo o seu dia. Isso serve tanto para questões de assédio, machismo ou racismo.

Somos pessoas impedidas, impedidos, impedides de estar em espaços de entretenimento por diversos motivos. Hoje em dia, a gente tem essa questão do ‘ah, tem dinheiro, consegue estar’. Não, mas é tudo um preparo psicológico. É o preparo psicológico da transfobia que você vai sofrer dentro do transporte público, de percorrer descendo na estação Autódromo. O que é você estar dentro desse espaço de entretenimento e você estar morrendo de vontade de fazer xixi, de ir ao banheiro e sei lá, retocar a maquiagem e você não consegue se sentir à vontade. 

Então, para além de você botar artistas trans ou privilegiar a diversidade no seu line-up, as instituições também precisam olhar pra gente e entender que nós somos público. E nós não somos público somente por dinheiro. Nós somos público pelo direito de ter acesso a isso. 

Precisamos disso para a nossa sociabilidade, pro nosso bem-estar. Enquanto for necessário ser criadas medidas provisórias ou qualquer tipo de política de inclusão, a gente vai ter que botar. Eu acho que estamos chegando num ponto em que não se vive mais um processo de negociação por inclusão de diversidade nesses espaços, é o mínimo.’’, explica Iná.

NÃO BASTA TER A LISTA, É NECESSÁRIO TER COMPROMETIMENTO COM OUTRAS MUDANÇAS

Mesmo que os festivais estejam cada vez utilizando o pink money (lucrando com uma superficial representatividade da comunidade LGBTQIA+, sem real envolvimento político pela causa) ou promovendo a lista trans free, é imprescindível que haja um diálogo com a própria comunidade e que seja assegurado que esse comprometimento não seja da boca para fora.

‘’[É importante levar em consideração] o diálogo, acima de tudo com pessoas trans, porque não há possibilidade de você falar sobre uma pauta política identitária de um contexto de uma população, e você não chame alguém para participar do debate e da sua construção. Ter essa troca e sensibilidade de chegar junto e do fazer junto, sabe? Caso contrário, é extrativismo, é assimilação, é roubo e é roubo intelectual.” pontua Ana Giselle.

“Então assim, se eu vou falar sobre fulana, eu tenho que mencionar fulana. Eu tenho que trazer fulana pra junto. E ir atrás de saber o fundamento, de saber a história, de ter pesquisa. E tudo isso surge do diálogo.’’, continua.

‘’Não é necessário que você espere que um agente externo tente argumentar para aceitar. O acesso ao entretenimento é essencial. Quando a gente fala de bem-estar social, o acesso a entretenimento e lazer é um bem-estar indispensável da vida.’’ afirma Iná.

Ainda é perceptível a necessidade de reestruturar as equipes e orientações nestes eventos. Foram observados casos em que houve a disponibilidade de apenas banheiros masculinos e para todes, excluindo o feminino; ou relatos da falta de orientação por parte da equipe de segurança sobre como e quem deveria realizar a revista na entrada. 

Uma questão apontada por Iná é a demora que as equipes dos festivais têm em dar a devolutiva se vão ou não aplicar a medida. Iná explica que essa demora acaba prejudicando o tempo de qualidade para análise das inscrições, que consequentemente, es aprovades ficavam sabendo muito em cima da data para se organizarem.

Como a postagem realizada pelo Psica foi próximo ao evento, Rainara já havia comprado o ingresso quando divulgaram a abertura da lista. ‘’Perguntei para a organização se poderia entrar na lista e vender meu ingresso, e eles deixaram! Pude usar o dinheiro do ingresso que vendi para outras coisas, por exemplo, o transporte pro local que estava saindo bem caro e a comida que estava carinha também.’’.

Mas um dos problemas mais recorrentes, que também configura como crime, é a negação e/ou não reconhecimento do nome social (nome pelo qual a pessoa de autor identifica), levando, por muitas vezes, ao constrangimento por ser associade a apenas ao nome morto (registrado na certidão de nascimento). Esse problema também é observado nos cadastros pessoais realizados pelas bilheterias. 

‘’É toda uma equipe que é necessária conscientizar. São pessoas comuns, como nós, que no máximo têm como referência pessoas estranhas ou uma representação na novela, que é meio ambígua e que ainda é cheia de estereótipos ruins. As pessoas que trabalham, seja enquanto terceirizado, na limpeza, construção, bar, todas essas pessoas também estão aprendendo ou reentendendo o que são essas pessoas que estão ali. Só que ainda é um processo.’’, complementa Iná.

Outro ponto importante é que, a partir disso, é possível estender essa oportunidade para as vagas de trabalho remunerado nesses eventos, seja enquanto artista, produtore, curadore, atendente de bar ou gerenciando a lista. Isso é importantíssimo para que o ambiente possa gerar pontes de assimilação e identificação desse público. Além dos line-ups que podem trazer outros nomes para além dos que já costumam ser contratades.

Ana Garcia, do festival Coquetel Molotov, complementa que: ‘’Não adianta a gente fazer um evento que é trans free e o evento não é seguro. Temos todo esse trabalho também sobre livre de assédio, temos seguranças trans, equipe de bar trans. Então, é muito importante que todas as pessoas consigam se sentir seguras no seu evento e consigam se enxergar ali. Você vai ter pessoas pretas, pessoas trans, PCDs trabalhando no seu evento e disponíveis para dar apoio. Isso é muito importante.’’

Iná também questiona que: ‘’As pessoas fazem estudos de festivais nacionais e internacionais também. Fazem estudos do que a cena está fazendo, desde um line-up, um artista que tá bombando, porque sabe o que atrai público. Essas pessoas não são oblíquas ao que está ocorrendo. O mínimo que você pode fazer quando coloca uma pessoa não-binárie ou travesti em um line-up é dar uma oportunidade para que pessoas que se pareçam com elas estejam ali, porque para eles (pessoas cisgênero), não rola essa demanda de identificação. Mas essas pessoas (cisgênero) que têm o acesso monetário para pagar por esses festivais, hoje em dia vão porque a Liniker ganhou um Grammy Latino. Querendo ou não, foi necessário que ela ganhasse certas credenciais pra que esse público cis-hétero olhasse pra ela da forma grandiosa que todas nós já olhavamos para ela há anos.’’

‘’E como é muito nítido você perceber essas pessoas no festival. E eu digo isso pra mim, enquanto uma pessoa trans, eu percebo rapidamente outras pessoas trans que estão ali. Então, se eu as perceber, eu tô feliz. Existem pessoas que certamente estão olhando aquilo e ficam tristes.’’, finaliza Iná Odará.

 

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Autor

  • Binha Sakata

    aka Binha, sou apaixonade por música e audiovisual e resolvi unir esses dois elementos para pesquisar e falar sobre música, principalmente a independente brasileira e internacional. Em 2015, comecei a fotografar shows, em 2019 entrei para o projeto audiovisual e podcast de entrevistas Culture-se (@pculturese) e em 2020 criei o programa musical de rádio DSCOTECA (@dscoteca). No Minuto Indie, já fiz de roteiros a apresentações e conteúdos.

Escrito por

Binha Sakata

aka Binha, sou apaixonade por música e audiovisual e resolvi unir esses dois elementos para pesquisar e falar sobre música, principalmente a independente brasileira e internacional. Em 2015, comecei a fotografar shows, em 2019 entrei para o projeto audiovisual e podcast de entrevistas Culture-se (@pculturese) e em 2020 criei o programa musical de rádio DSCOTECA (@dscoteca). No Minuto Indie, já fiz de roteiros a apresentações e conteúdos.