
Sem Diversão Pra Mim é um mergulho caótico, visceral e ensolarado no rock alternativo — um disco que desarma expectativas e transforma nostalgia em rebelião.
Em meio ao marasmo de algumas repetições dentro do rock brasileiro, Maré Tardia surge como uma onda inesperada, vigorosa e cheia de textura. A banda capixaba — formada por Gus Lacerda (guitarra / voz e que assina a produção junto com o Alexandre Capilé, do Sugar Kane), Bruno Lozorio (guitarra / voz), Canni (baixo) e Vazo (bateria) — entrega um disco que soa como uma descarga elétrica, daquelas que te fazem lembrar por que você ama música. É como se cada faixa tivesse sido feita com o corpo inteiro, com suor escorrendo e a intensidade de um show ao vivo, daqueles que te deixam com zumbido no ouvido e um sorriso no rosto.
Desde os primeiros segundos de audição, fica claro que eles não estão apenas tocando instrumentos: estão criando uma atmosfera. A textura sonora do disco lembra o hardcore californiano (o famoso SoCal), mas também resgata aquele punk brasileiro raiz — algo que remete a Inocentes, Garotos Podres, Olho Seco. Ao mesmo tempo, as melodias têm um quê de jingle pop, com um flerte apaixonado a surf music e até uns toques discretos de country punk – inclusive em alguns momentos, por causa desse tipo de mistura do disco (que em instantes soa como uma vibe praiana, meio nostágica e em época de carnaval), lembra até como Los Hermanos elaborava seus instantes mais pesados nos dois primeiros álbuns, principalmente na junção dos vocais com as melodias.
Parece que tudo foi misturado de um jeito tão intuitivo que soa natural, autêntico. De certa forma, é o tipo de fusão sonora que lá atrás bandas como Hüsker Dü e Replacements fizeram, ao inserir elementos “estranhos” ao punk para criar algo novo, como também bandas pré-grunge tipo Mudhoney, Sonic Youth, Pixies ou Dinosaur Jr. — tudo isso sem soar derivativo. Eles transformam essas referências em algo só deles. A forma como essas camadas se organizam é o que mais impressiona. O baixo, por exemplo, se destaca nas passagens mais arrastadas, mas também marca presença com velocidade, enquanto as guitarras ora soam cortantes, ora embarcam numa psicodelia shoegaze bem etérea.
Surf punk, pós-punk e o charme de chegar “tarde” à festa
O que talvez torne tudo ainda mais especial é o uso constante — ainda que sutil — da surf music como pano de fundo. É como uma maresia pairando no ar: não precisa estar o tempo todo na tua cara, mas ela está ali, no cheiro, na textura, no jeito como as faixas vão te envolvendo. É aquela vibe de sol de fim de tarde, pé na areia, corpo relaxado depois de um mergulho bom. Tem algo de cinematográfico nisso, quase como se a banda tivesse traduzido em som a sensação de estar num fim de semana com amigos, vivendo o melhor verão da vida.
E aí entra a beleza do nome da banda: Maré Tardia. Um nome que carrega muitas camadas. Pode ser a metáfora perfeita pra esse som que chega como uma onda quando ninguém mais esperava — depois do auge, depois da festa. Como se dissessem: “a gente chegou tarde, mas chegou com tudo”. Tem esse ar de leve desencaixe geracional, esse charme de quem aparece depois, mas ainda assim acerta em cheio. É quase como um protesto tranquilo: estamos aqui, e vamos tocar do nosso jeito.
Outra vertente a se destacar no trabalho é o pós-punk. A forma como certas ambiências se estruturam, os ecos que aparecem no fundo de algumas faixas, remetem a esse momento do início dos anos 2000 em que o revival do garage punk cruzava com um novo interesse por sonoridades mais densas e climáticas. Aquela fase em que bandas como Interpol, The Strokes, e Franz Ferdinand estavam despontando — e que, aos poucos, moldou o que viria a ser o novo rosto do rock nos anos 2010. É como se o Maré Tardia tivesse assimilado essas ondas também. Eles fundem os ecos dos anos 80, os riffs dos 90, a sujeira dos 2000 e a urgência dos 2010, tudo isso dentro de um disco que soa brasileiro, mas que dialoga com uma cena global.
Aliás, não me lembro de outra banda — brasileira ou gringa — que use a surf music não como gênero central, mas como condimento, como textura. Eles desmontam esse estilo e remontam do zero, usando seus elementos como gambiarras sonoras: uma palinha aqui, um groove ali, uma melodia que te pega no contrapé, como se você estivesse visitando praias diferentes, de tempos diferentes, em países diferentes.
E é justamente isso que torna o som deles tão especial. É instigante. O disco vai te envolvendo aos poucos, e mesmo quando parece que a música já revelou tudo, tem sempre mais uma camada ali, escondida. O álbum inteiro tem esse frescor, essa energia que parece renovar o ouvinte. É um daqueles discos que te pegam de surpresa — no meu caso, me pegou de calça arriada mesmo — e quando você percebe, já está ouvindo em loop, tentando identificar cada referência, cada detalhe escondido nas entrelinhas sonoras.
Maré Tardia entrega não só um dos discos mais interessantes do ano, como um trabalho que amplia as possibilidades do que se pode fazer com punk, surf, lo-fi, psicodelia e rock alternativo no Brasil. É revigorante. E, pra mim, já está entre os grandes de 2025.